Opinião: Estado deve indenizar se descumpre duração razoável do processo
[ad_1]
Analisando a atual Constituição Federal Brasileira, a qual é norteadora de todo o sistema normativo, identifica-se entre os objetivos da República a construção de uma sociedade livre, justa e solidária. Como instrumento para o alcance dos preceitos previstos na Lei Maior, tem-se assegurado, entre outros, o postulado da duração razoável do processo (art. 5º, LXXIII, da CF).
Diante das limitações para o presente esboço, destaca-se que o objetivo é traçar os aspectos viabilizadores do dever de indenização pelo Estado para os casos de inobservância da duração razoável do processo, devendo-se compreender tal preceito constitucional para além da mera celeridade processual. Nesse sentido, lecionam Luiz Guilherme Marinoni e Daniel Mitidiero:
O direito à duração razoável do processo não constitui e não implica direito a processo rápido ou célere. As expressões não são sinônimas. A própria ideia de processo já repele a instantaneidade e remete ao tempo com algo inerente a fisiologia processual.
A natureza necessariamente temporal do processo constitui imposição democrática, oriunda do direito das partes de nele participarem de forma adequada, donde o direito ao contraditório e os demais direitos que confluem para organização do processo justo ceifam qualquer possibilidade de compreensão do direito ao processo com duração razoável simplesmente como direito a um processo célere.[1]
Porém, segundo a lição do mestre português José Lebre de Freitas, a “progressiva valoração da celeridade processual não deve, porém, levar a subalternizar, como por vezes entre nós se verifica, a necessária maturação e qualidade da decisão de mérito, com o inerente desvio da função jurisdicional”.[2]
A inobservância do princípio da duração razoável do processo não é privilégio do Brasil. A título comparativo, convém mencionar a situação em Portugal, que igualmente consagrou em sua Constituição, em 1997, o princípio em comento sob a seguinte redação “Todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objecto de decisão em prazo razoável”.
Os critérios identificadores do cumprimento deste princípio, no Direito português, conforme José Lebre de Freitas, levam em consideração o tempo de trâmite desde a sua propositura até o término do processo, atentando-se às peculiaridades do caso concreto, em especial, a sua complexidade e os interesses em jogo, bem como a contribuição que as partes possam ter dado para a demora do processo e, ademais, se esteve parado durante período significativo.
Em relação à complexidade do caso concreto, explicita o autor tratar-se da necessidade de considerar “a dificuldade das questões de direito, o volume do processo, a quantidade de provas a produzir”. Já em relação aos interesses em jogo, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem tem exigido especial diligencia nos seguintes casos:
(…) em matérias de estado e de capacidade das pessoas, bem como de contrato de trabalho, entendendo nomeadamente que os processos de regulação do poder paternal e os que visam reintegração do trabalhador no local de trabalho ou a sua indemnização por rescisão do contrato devem ter tratamento urgente.[3]
Identificada ofensa ao princípio da duração razoável do processo no sistema português, e desde que não tenha a parte contribuído para a morosidade, sendo esta decorrente da ineficiência do Estado, constitui-se a obrigação de indenizar, sendo, outrossim, indiferente que para o retardamento processual tenha contribuído apenas o tribunal ou também o poder legislativo ou administrativo[4].
Enquanto na Europa compete ao Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, através da Comissão Europeia de Direitos Humanos, receber as queixas de violação aos direitos humanos, entre eles a inobservância ao direito à duração razoável do processo, a Corte Interamericana de Direitos Humanos possui tal responsabilidade no âmbito das Américas. Caso confirmada violação aos direitos essenciais do ser humano, estabelece a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, em seu art. 63:
Quando decidir que houve violação de um direito ou liberdade protegidos nesta Convenção, a Corte determinará que se assegure ao prejudicado o gozo do seu direito ou liberdade violados. Determinará também, se isso for procedente, que sejam reparadas as consequências da medida ou situação que haja configurado a violação desses direitos, bem como o pagamento de indenização justa à parte lesada.
Vê-se, desta forma, o dever do Estado de indenizar o jurisdicionado lesado diante do desrespeito ao direito a um processo de duração razoável. No Brasil, não há uma norma expressa neste sentido. Contudo, a Carta Magna regula os deveres do Estado, bem como os princípios que regulam sua atividade, sendo, assim, passível de identificação em seu conteúdo a possibilidade de responsabilizar o Estado por descumprimento da duração razoável do processo.
João Paulo dos Santos Melo, ao comentar sobre a responsabilidade do Estado diante do desrespeito a duração razoável do processo, destaca que sinalizar no sentido do cabimento da responsabilidade do Estado nestes casos, é fundamental para efetivar o referido postulado, pois, se afirmado não haver qualquer ônus Estado diante do descumprimento, “criamos uma cláusula de irresponsabilidade que, em termos práticos, indiretamente, inutilizaria a garantia da razoável duração”[5].
Esclarece Jobim, entretanto, que o dever indenizatório em comento surge a partir do §6º do artigo 37 da Constituição Federal, e não do artigo 5º, inciso LXXV, o qual prevê “o Estado indenizará o condenado por erro judiciário, assim como o que ficar preso além do tempo fixado na sentença”.
Destaca, ademais, como fundamento para tal obrigação indenizatória, a ofensa ao direito esculpido no art. 5º, XXXV, CF, segundo o qual “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”, sendo, por conseguinte, a prestação jurisdicional morosa uma flagrante ofensa a tal princípio.
Igualmente deve ressaltar-se a previsão do artigo 125 do Código de Processo Civil, estabelecendo ser dever do julgador “velar pela rápida solução do litígio”. [6]
Em que pese o posicionamento doutrinário defendendo a responsabilidade estatal por inobservância do tempo do processo, há quem sustente que os atos do Poder Judiciário estariam excluídos da responsabilidade do Estado, porque os juízes exercem função de soberania, sendo, por conseguinte, os magistrados independentes e, ao admitir-se a responsabilização civil por atos do Judiciário, estar-se-ia tolhendo o julgador.[7]
Nesse mesmo sentido, João Paulo dos Santos Melo destaca o entendimento de que somente seria possível responsabilizar o Estado nos casos expressos na Carta Magna (artigo 5º, inciso LXXV) e, para tal interpretação são utilizados os seguintes argumentos:
O juiz não é um funcionário público, mas um agente político, não podendo ser responsabilizado do mesmo modo dos demais agentes públicos. A imposição é de responsabilidade por ato ou omissão jurisdicional afetaria a independência da magistratura. Haveria restrição à soberania do Estado, já que o ato do juiz é um ato de soberania. Ocorreria a ausência de previsão legal para a responsabilização; e a intangibilidade do preceito da coisa julgada.[8]
Em termos jurisprudenciais, o Supremo Tribunal Federal já se posicionou no sentido da irreparabilidade dos danos decorrentes dos atos do Poder Judiciário, utilizando-se, para tanto, do argumento de que se trata de “um Poder soberano, que goza de imunidades que não se enquadram no regime da responsabilidade por efeitos de seus atos quando no exercício de suas funções”.[9]
Todavia, em que pese as ponderações contrárias à responsabilidade do Estado quando da inobservância da duração razoável do processo, a doutrina posiciona-se de maneira favorável a ideia e, neste sentido, afirma José Augusto Delgado: “sendo a jurisdição, também, dever do Estado, no instante em que ela é tardiamente entregue ao cidadão, gera a responsabilidade do causador do dano imposto a quem dela necessita, pela demora”.[10]
Corroborando o entendimento no sentido da viabilidade da responsabilidade estatal, deve-se considerar que a Lei Orgânica da Magistratura fixa no art. 35, II, entre os deveres dos juízes: “não exceder injustificadamente os prazos para sentenciar ou despachar”. Frente a tal previsão, por conseguinte, resta evidenciado que o descumprimento injustificado dos prazos implica na prática de ato contrário ao ordenamento jurídico e, por consequência, ato ilícito, a partir do qual, sabidamente, nasce o dever de indenizar.
Também reforçando a possibilidade de responsabilização do julgador, e, por consequência do Estado, já que este, por força do art. 37, §6º, CF, responde pelos atos dos seus agentes, tem-se a previsão do art. 143, inciso II, CPC, segundo o qual o juiz responde por perdas e danos quando “recusar, omitir ou retardar, sem justo motivo, providência que deva ordenar de ofício ou a requerimento da parte”.
Percebe-se, assim, que o retardamento de atos processuais pelo julgador, o qual tem o dever de impulsionar o processo, gera o dever de indenizar. Por conseguinte, mais se justifica a incumbência de reparar quando a procrastinação culminar na infração à duração razoável do processo.
Reconhecendo-se a obrigação indenizatória, nos termos do art. 37, §6º, CF, surge outra celeuma em torno da questão, qual seja a de aplicação da responsabilidade civil objetiva ou subjetiva do Estado.
Tal indagação decorre do seguinte questionamento: a morosidade processual apresenta-se como ação ou omissão ilícita? Conforme a resposta a tal dúvida, segundo a doutrina do direito administrativo, será o tipo de responsabilidade a ser aplicada: objetiva ou subjetiva[11]. Quanto ao tema, transcreve-se o posicionamento de João Paulo dos Santos Melo sobre o tipo de responsabilidade aplicável nestes casos:
A análise, entendo, não pode feita em abstrato de modo a afirmarmos que a responsabilização sempre será subjetiva ou sempre objetiva. É importante voltarmos os olhos para o caso concreto. Por exemplo, se a demora do processo ocorreu por um ato praticado pelo juiz que reteve os autos por um prazo exacerbado. Sem entrar no elemento subjetivo do agente, dolo ou culpa, nesse caso, vemos que houve um processo, objetivamente falando, com dilações indevidas causadas por uma ação de um agente público. Temos, então, o direito subjetivo à duração razoável lesionado por uma ação de agente do Estado, o que gera a aplicação da responsabilidade objetiva.
Ao contrário, se temos um processo lento, por insuficiência de funcionários, juízes, material de expediente, grande quantidade de processo, tal fato ocorre não por uma ação, mas sim por uma omissão do Estado em aparelhar e fiscalizar o Judiciário gerando um serviço público imperfeito. Nesse caso, temos uma omissão, em decorrência da falta ou deficiência do serviço, devendo ser aplicada a teoria da responsabilidade subjetiva.[12]
Veja-se que a questão não é nada simples para identificação prática, pois, ao mesmo tempo em que, no primeiro exemplo, tem-se a ação do julgador na retenção dos autos, gerando o dever de indenizar de forma objetiva, tal delonga do juiz pode ser decorrente, na verdade, na falta de aparelhamento do Poder Judiciário, havendo excesso de processos a serem despachados e decididos, o que, naturalmente, impõe a manutenção dos autos por período de tempo maior.
Efetivamente é difícil delimitar e ilustrar os casos de responsabilidade objetiva e subjetiva, mas se viabiliza afirmar e concluir que o dever de reparação nesses casos deve ter como pressuposto que as delongas processuais sejam decorrentes da conduta do próprio Estado. Não será possível admitir o dever reparatório do Estado quando a parte que alega ter sido lesada, e busca uma reparação, concorreu para o descumprimento da duração razoável do processo.
Ademais, não há prazo pré-fixado a ser utilizado como parâmetro para aferir-se o tempo adequado para o desenvolvimento e prestação da atividade jurisdicional. Assim, deverá ser identificado, no caso concreto, quais são as peculiaridades, como, por exemplo, o tipo de demanda.
O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem vem orientando que ações sobre poder parental, entre outras, merecem especial diligência, sendo evidente, por conseguinte, que deverão ter duração mais breve do que, por exemplo, uma ação anulatória de um contrato de compra e venda, identificando-se, assim, a relação entre a natureza do direito em litígio e o tempo do processo.
Registra-se, por fim, a relevância do referido princípio e a imperiosa necessidade de impor-se ao Estado consequências quando for negligente ou omisso na condução de um processo que deve atender a razoabilidade de duração.
Referências
FREITAS, José Lebre de. Introdução ao Processo Civil: Conceito e Princípios Gerais. Coimbra Editora. 2009.
JOBIM, Marco Félix. O Direito à duração razoável do processo: responsabilidade civil do Estado em decorrência da intempestividade processo. 2ª. edição. Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2012.
MELO, João Paulo dos Santos. Duração Razoável do Processo. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2010.
MARINONI, Luiz Guilherme e MITIDIERO, Daniel. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012.
NICOLITT, André Luiz. A Duração Razoável do Processo. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2006.
[1] MARINONI, Luiz Guilherme e MITIDIERO, Daniel. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012, p. 678.
[2] FREITAS, José Lebre de. Introdução ao Processo Civil: Conceito e Princípios Gerais. Coimbra Editora. 2009, p. 127.
[3] FREITAS, José Lebre. Ob. Cit, p. 126.
[4] FREITAS, José Lebre. Ob. Cit., p. 127.
[5] MELO, João Paulo dos Santos. Duração Razoável do Processo. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2010, p. 172.
[6] JOBIM, Marco Félix. O Direito à duração razoável do processo: responsabilidade civil do Estado em decorrência da intempestividade processo. 2ª edição. Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2012, p. 202.
[7] NICOLITT, André Luiz. A Duração Razoável do Processo. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2006, p. 101.
[8] MELO, João Paulo dos Santos. Ob Cit., p. 174.
[9] RTJ 39/190 apud Melo, João Paulo dos Santos. Ob. Cit., p. 174.
[10] DELGADO, José Augusto. A demora na entrega de prestação jurisdicional responsabilidade do Estado – indenização, 1995, p. 519 apud MELO, João Paulo dos Santos. Ob. Cit. p. 175.
[11] Melo, João Paulo dos Santos. Ob. Cit.,p. 179.
Ana Luiza Berg Barcellos é advogada, especialista em Direito Processual Civil pela PUC-RS; mestre em Educação pela UFPEL e doutoranda em Política Social pela UCPEL. Também é professora de Teoria Geral do Processo e Direito Processual Civil da UCPEL e coordenadora do curso de Direito da UCPEL.
[ad_2]
Advogado em São José do Rio Preto