Magne da Silva: Caso dos passaportes é só parte dos problemas da PF
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Os brasileiros receberam com surpresa, no último dia 27, o anúncio da Polícia Federal de que a emissão de passaportes estava suspensa por tempo indeterminado, sob a justificativa de falta de recursos. A PF — que tem o apreço ainda maior da sociedade brasileira em razão do sucesso nas investigações da operação “lava jato” —, desta vez, causou revolta em milhares de pessoas que aguardavam o documento, muitas delas com viagem marcada.
A emissão do passaporte, exigido em viagens internacionais para diversos países, é um serviço público essencial, que permite o exercício do direito constitucional de ir e vir. Além do mais, é um serviço remunerado por taxa paga pelo requerente, não havendo justificativa para sua suspensão.
A Lei 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor) dispõe que os órgãos públicos são obrigados a prestar serviços adequados, eficientes, seguros e, quando essenciais, de forma contínua. Prevê também que, nos casos de descumprimento dessas obrigações, serão forçados a cumpri-los e a reparar os danos causados.
A PF integra a estrutura do Ministério da Justiça, portanto, o diretor-geral do órgão é subordinado ao ministro. O diretor não teria alertado o seu superior da gravidade do problema? Se o ministro da Justiça tinha conhecimento do fato, por que somente no dia seguinte à nota enviada pela PF à imprensa é que enviou projeto de lei propondo abertura de crédito suplementar destinado à emissão de passaportes? Estaria o relacionamento entre eles comprometido?
Dentre os princípios constitucionais que regem a administração pública está o da supremacia do interesse público e o da eficiência. Eles devem servir como norte para atuação do administrador público na gestão dos recursos disponíveis com qualidade, celeridade e economicidade, para evitar prejuízos à administração. A paralisação do serviço é fato grave; se tivesse ocorrido em outro órgão público, certamente resultaria na exoneração da autoridade e na apuração das responsabilidades.
A atuação do administrador público é de exercício obrigatório, irrenunciável, nos limites da lei, em função da indisponibilidade do interesse público. A omissão pode configurar ato ilegal. A Lei 8.429/1992 define como ato de improbidade administrativa, que atenta contra os princípios da administração pública, qualquer ação ou omissão que “viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade, e lealdade às instituições”. Notadamente, quando “retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício”.
Segundo relatório de prestação de contas divulgado no site da PF, em 2016, foram expedidos 2.234.406 passaportes comuns. Com a taxa de R$ 257,25 por documento, a arrecadação total foi de R$ 578,7 milhões, valor que não inclui as taxas decorrentes da emissão de outros documentos de viagem. Esse total arrecadado corresponde a mais que o dobro dos R$ 248 milhões necessários para a manutenção do serviço, de acordo com a própria PF.
Os serviços de controle e registro de estrangeiros, emissão de passaportes e outros documentos de viagem decorrem da prerrogativa de controle de fronteiras prevista no artigo 144 da CF, que dispõe caber à PF “exercer as funções de polícia marítima, aeroportuária e de fronteiras”. Essa atuação visa proteger a soberania do país, pela fiscalização e policiamento de fronteiras terrestres, marítimas e aéreas, controle migratório e prevenção da prática de crimes transnacionais, atuando em cooperação com outros países por meio da Interpol.
De acordo com o Balanço Orçamentário da Polícia Federal, em 2016 foi arrecadado em taxas o montante de R$ 859,3 milhões. Apesar desse volume, somente 30%, no máximo, da receita total ficam disponíveis para o custeio das despesas com deslocamento e manutenção de policiais em operações oficiais relacionadas à atividade-fim da PF, por meio do Fundo para Aparelhamento e Operacionalização das Atividades-Fim da Polícia Federal (Funapol), de acordo com a Lei Complementar 89/1997.
Uma pesquisa junto aos cidadãos-usuários dos serviços de emissão de passaporte reportou um índice médio nacional de 4,62 de satisfação (em um máximo de 5), e a arrecadação de taxas pela emissão de passaportes bate sucessivos recordes anuais. Por outro lado, para citar apenas um exemplo, a sala do setor de passaportes da unidade da PF em Dionísio Cerqueira (SC), assim como o restante do prédio da delegacia, está caindo aos pedaços. Essa é a realidade em várias outras unidades da PF no país.
O episódio dos passaportes levou a entidade de classe que representa os delegados federais a levantar a cantilena da autonomia da PF, na forma da Proposta de Emenda à Constituição 412/2009. Essa PEC, que desde 2009 está na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados, altera o parágrafo primeiro do artigo 144 da CF para a seguinte redação: “Lei Complementar organizará a polícia federal e prescreverá normas para a sua autonomia funcional e administrativa e a iniciativa de elaborar sua proposta orçamentária dentro dos limites estabelecidos na lei de diretrizes orçamentárias (…)”.
A PEC 412 pretende uma autonomia para a PF que é inédita para um órgão policial, não encontrando parâmetro em nenhum país democrático do mundo. Com autonomia e independência, a PF sairia do controle do Ministério Público e do Poder Executivo, com a prerrogativa de definir, na prática, quem deve ou não ser investigado, tornando-se uma espécie de agência autônoma de espionagem. Teria mais poderes que as Forças Armadas. A redação da PEC 412 é um perigo para a PF, pois retira sua estrutura de órgão permanente, ficando passível de extinção por lei, e extingue a carreira policial federal.
Além disso, a PEC 412 não resolveria a questão de falta de orçamento, até porque a iniciativa do órgão de elaborar sua proposta orçamentária já ocorre na prática na PF. Em nota à imprensa, o próprio órgão informou que, “desde o início das discussões preparatórias para elaboração do orçamento de 2017, a PF indicou que seriam necessários R$ 248 milhões para cobrir as despesas referentes às atividades de controle migratório e emissão de documentos de viagem para o ano todo” e que “a lei orçamentária aprovada previu o limite financeiro de R$ 121 milhões para esses serviços”. Ou seja, o valor que a PF indicou foi o mesmo que o governo federal encaminhou ao Congresso Nacional, tendo sido reduzido durante a votação do projeto de lei.
Para blindar a PF de cortes orçamentários, a solução seria definir na Constituição Federal a vinculação do orçamento da segurança pública, tal como previsto para as áreas de saúde e educação. Com isso, a dotação orçamentária das receitas da PF estaria vinculada à expressa definição constitucional, e os órgãos policiais poderiam elaborar sua própria proposta orçamentária, restringindo a liberdade do Executivo ou do Legislativo de dispor do Orçamento da PF como lhes aprouver. Para tanto, faz-se necessária outra PEC.
A PF, assim como outros órgãos públicos, padece com a crise econômica e a escassez generalizada de recursos, agravadas com a redução expressiva do efetivo policial, acelerada pela anunciada reforma da Previdência. O déficit de pessoal tem provocado vários transtornos e prejudicado o andamento dos serviços da PF, inclusive em postos de fronteira, portos e aeroportos do país. Esses serviços há anos já vêm sofrendo restrições orçamentárias.
O imbróglio dos passaportes e da falta de orçamento é apenas parte dos problemas estruturais de gestão do órgão. Além de uma lei orgânica, falta também à PF regulamentar a carreira policial federal, cujos cargos não têm sequer atribuições em lei. O regime disciplinar da PF (Lei 4.878/65) é contemporâneo do AI-2, baixado pela ditadura militar, uma verdadeira “lei da mordaça” que tem fomentado a instauração abusiva de processos disciplinares e uma guerra fraticida dentro da PF.
Para além do que se vê cotidianamente na TV e nos jornais, de notícias sobre as grandes operações da PF, disputas pelo poder e por interesses corporativistas se desenvolvem nos bastidores de uma das mais prestigiadas polícias do país. Resta esperar para ver quem vai resistir ao empurrão na fila dos passaportes.
Magne Cristine Cabral da Silva é advogada, escrivã da Polícia Federal aposentada e diretora de Comunicação da Federação Nacional dos Policiais Federais (Fenapef) e da Ordem dos Policiais do Brasil (OPB). É pós-graduada em Direito Público, especialista em Execução de Políticas de Segurança Pública e bacharel em Direito e Administração de Empresas.
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Advogado em São José do Rio Preto