Risco fiscal não é fundamento judicial válido para aumentar tributos
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Argumentos declarando o risco de quebra fiscal do país voltam a ser utilizados em matéria tributária! Dessa vez, de forma pior, não apenas como pleito para eventual modulação de decisão judicial (como analisei em coluna anterior), mas como “fundamento” único para se restabelecer o aumento do preço dos combustíveis (por meio do aumento da carga tributário de PIS e Cofins incidente sobre eles).
Gostaria de tratar nesta coluna do uso de argumentos não jurídicos (ou de ausência de fundamentação jurídica) para lastrear decisões de cunho consequencialista, ou seja, preocupadas com o cálculo dos resultados de sua produção e não com a obediência ao direito posto.
Os dados factuais pressupostos, resumidamente, são:
A Lei 10.865/2004 cria regime especial e optativo de apuração de PIS e de Cofins incidentes sobre combustíveis (gasolina, álcool e etanol, no que aqui nos interessa). A lei, quanto a esse regime, fixa valores fixos por metro cúbico e, em seu parágrafo quinto, prescreve que o Poder Executivo está autorizado a fixar coeficientes para a redução das alíquotas ali previstas, autorizando sua alteração para mais ou para menos a qualquer tempo.
Não há dúvida, portanto, de que, na dicção estritamente legal, o presidente da República pode reduzir as alíquotas, como fez algumas vezes, bem como restabelecê-las a qualquer momento.
Recentemente, o Decreto 9.101, de 20 de julho de 2017, restabeleceu os valores previstos originalmente na lei (e, ainda mais recentemente, reduziu um pouco o aumento sobre o etanol).
Pois bem, o governo se vale de tal autorização legal para tratar as contribuições sociais da seguridade social (como são os dois tributos aqui tratados) como instrumento de política econômica setorial ou, no caso dos péssimos resultados macroeconômicos atuais, para buscar suavizar o desastre fiscal. O faz, inclusive, porque buscou ter alteração legal quando deu início ao projeto de lei que agora o autoriza.
Sobre a transmutação das contribuições da seguridade social em impostos sobre o consumo, já tive oportunidade de criticar tal fato em texto publicado aqui anteriormente (“É fundamental repensar política econômica que se vale de tributos”).
Muitos juristas, contudo, vêm nessa autorização legal a afronta a duas garantias fundamentais dos contribuintes, previstas, também expressa e literalmente, em nossa Constituição Federal: legalidade tributária (art. 150, I – em que toda majoração de tributo deve ser imposta por meio de lei em sentido formal) e anterioridade tributária nonagesimal (195, §6º – em que há de se respeitar o prazo de 90 dias quando se aumenta esse tipo de contribuição).
Assim, em que pese toda a relevância do tema jurídico (direito fundamentais dos contribuintes versus necessidade de receitas derivadas pelo Estado), do ponto de vista da fundamentação da decisão jurídica, a questão acaba bem delimitada:
1) ou bem o decreto que restabeleceu o valor dos tributos possui validade jurídica no art. 23, §5º da Lei 10.865/2004 para aumentar a carga tributária;
2) ou o decreto desrespeitou:
2.1.) a legalidade tributária;
2.2.) a anterioridade tributária;
Não estou preocupado, no curto espaço dessas linhas, com a exposição ou defesa dos argumentos jurídicos favoráveis ou contrários ao aumento dos valores de PIS e de Cofins incidentes sobre os combustíveis. Muito menos com a decisão do governo federal de buscar essa forma de receita para a diminuição da pressão fiscal.
A liminar concedida pela 20ª Vara Federal Cível da Justiça Federal de Brasília para suspender o aumento dos tributos por decreto e a decisão do presidente do Tribunal Regional Federal da 1ª Região de suspendê-la até o trânsito em julgado da matéria servirão de mote para algo que trato há certo tempo e sobre vários ramos do Direito.
Assim, não se deve esperar desse ensaio uma defesa da possibilidade ou não do aumento por decretos, com ou sem respeito à anterioridade nonagesimal, e nem críticas pessoais ou institucionais.
Preocupa-me, isso sim, o tema da fundamentação das decisões jurídicas (teoria da argumentação) no sistema jurídico brasileiro, sobretudo em um contexto, que defendo, de positivismo jurídico contemporâneo.
Nesses termos, defendo que a interpretação de (textos de) normas jurídicas é um ato de vontade[1], ou mais especificamente uma decisão jurídica, evitando a perspectiva mais frequente de considerá-la como o resultado ou processo baseado em uma compreensão mental, que poderia ser acessível ao teórico que pretende estudá-la.
Ao partir dessa conclusão, surge o desafio: se no processo de aplicação da norma jurídica (do texto à norma) tem-se esse processo de decisão, a configurar, no mínimo, certa carga construtiva, como vincular o texto (ponto de partida) ao resultado? Como dizer se a decisão foi correta?
Tem-se, neste ponto, um deslocamento da questão das origens do sentido da norma para a do resultado, ou seja, para a da justificativa das decisões. Desloca-se a pergunta pelas causas em favor do estudo da justificação[2]. A regularidade semântica obtida na jurisprudência relativa a um tema decorre justamente do aperfeiçoamento de um treino, o que justificará a regularidade comportamental frente a comandos (textos de normas)[3].
Outro ponto a ser esclarecido, com essa expressão, positivismo jurídico contemporâneo, quero, de início, evitar a falsa impressão de que defender modelos positivistas acarreta defender uma metodologia estilizada do século XIX, que prega a separação total dos saberes, a interpretação e aplicação mecanicista das normas jurídicas, enfim, a assepsia generalizada e a ausência de valores das normas do direito.
O complemento contemporâneo cumpre apenas essa função de ressaltar que existe um debate metodológico e de que há uma contestação embasada dos construtos que pregam o retorno ao moralismo, a proeminência do Poder Judiciário na construção do Estado de Direito, a ênfase aos aspectos programáticos da Constituição, à ponderação dos princípios, ao uso argumentativo exagerado na proporcionalidade e da razoabilidade e em cálculos econômicos, tudo isso a partir de importações de teorias surgidas em contextos históricos, sociais, constitucionais e ideológicos muito distintos.
Daí a importância da menção ao positivismo jurídico. Nossa pesquisa está inserida dentro do contexto de autores que aceitam o direito como produto cultural e social, que reconhecem as influências de toda a sorte no processo de concretização, mas que entendem que as decisões jurídicas, por deverem ser fundamentadas (com base no Estado de Direito, na constituição federal e na legislação vigente), o devem ser por argumentos e fundamentos jurídicos (teste do pedigree)[4].
Critico, portanto, as teorias consequencialistas, que elegem algum valor extra ordenamento como principal elemento teleológico a ser concretizado, seja a eficiência econômica, seja algum tipo de moralismo customizado ou argumentos de razão prática, como salvar a política econômica deste ou de outro governo.
Sobre a concretização jurídica, muito embora não se possa defender a referibilidade entre o resultado da aplicação (norma jurídica construída) e o texto normativo (pretensamente, o ponto de partida) – ao menos não do ponto de vista da teoria do conhecimento –, será no campo da argumentação jurídica que se permitirá um mínimo de controle do processo, a saber, regras procedimentais preestabelecidas, necessidade de fundamentar a decisão jurídica construída e o sistema processual estatal, que possui regras que uniformizam sentidos e impedem a discussão interminável (expedientes de uniformização de jurisprudência, limite de recursos processuais, trânsito em julgado etc).
Na teoria da argumentação, Stephen Toulmin buscou questionar a filosofia analítica de sua época e o uso de um modelo lógico-formal no qual os argumentos analíticos seriam modelos ideais para outros campos que não o da matemática pura, sobretudo nas explicações da lógica prática (o tal deslocamento de uma teoria epistemológica para uma análise epistemológica).
O modelo básico da argumentação em Toulmin conta com os seguintes elementos: uma alegação [C de claim], os dados que a fundamentam [D de data], sua garantia de que esses fundamento ou dados podem reforçar a decisão [W de warrant] e seu apoio final e mais importante[B de backing].
De acordo com as regras de nosso sistema jurídico, há a obrigação de fundamentação das decisões jurídicas e o fundamento de direito positivo deve ser apresentado (teste do pedigree).
Isso significa, e isso é importante, que o apoio [Backing] de uma decisão sempre deverá ser um texto normativo vigente em nosso ordenamento jurídico e não uma teoria ou razão prática qualquer. Essa fundamentação é jurídica e deve atender ao “teste do pedigree”, ao dever de fundamentação.
Esse dever é uma garantia constitucional, a de que nos processos deve-se atender à ampla defesa (o que obriga à exposição dos fundamentos de qualquer decisão), além do contraditório. Veja-se o disposto na Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5º, inciso LV: “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”.
Veja-se, ainda, o art. 93, incisos IX: “todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação”
Além disso, a Administração Pública e seus atos estão submetidos ao princípio da legalidade (art. 37 da CF/1988).
Nada diferente do que o próprio Código de Processo Civil prescreve, até mesmo quando fala em se valer de precedentes, não autorizando aos magistrados a mera citação de decisões anteriores, sobretudo quando citados apenas por uma das partes.
Vê-se que todo o ordenamento jurídico brasileiro é construído em torno do dever e da garantia da fundamentação dos atos administrativos e judiciais, com o que, no caso de decisões proferidas em processo, ganha ainda maior relevância a explicitação dos fundamentos jurídicos e os critérios da apreciação fática.
A mera referência ao risco macrofiscal – o que costumo chamar de terrorismo fiscal argumentativo – como conta de chegada para permitir majoração de tributos sem enfrentar o debate jurídico próprio de sua validade jurídica não deveria sequer existir.
Repetindo de forma mais clara: ou bem o decreto não ofende a legalidade tributária e/ou a anterioridade nonagesimal ou encontra barreira para a sua existência no ordenamento. A ausência de fundamentação específica com menção apenas ao apoio à política fiscal atual do Poder Executivo não é função do Poder Judiciário.
O uso do artigo 4º da Lei 8.437/1992, tampouco dispensa a necessidade de fundamentação jurídica da decisão, ainda que liminar.
Art. 4° Compete ao presidente do tribunal, ao qual couber o conhecimento do respectivo recurso, suspender, em despacho fundamentado, a execução da liminar nas ações movidas contra o Poder Público ou seus agentes, a requerimento do Ministério Público ou da pessoa jurídica de direito público interessada, em caso de manifesto interesse público ou de flagrante ilegitimidade, e para evitar grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas.
Até porque o dispositivo não dispensa o dever de motivação, o que não permitiria se desviar de decidir se houve ou não ofensa aos direitos fundamentais somente com base nas contas públicas da política fiscal atual.
Nesse sentido, critico todos os consequencialismos, incluindo todos os aplausos que alguns entusiastas do law and economics (assunto estranho ao meu texto de hoje, mas semelhante em sua afronta ao positivismo), fazem quando juízes afastam a lei para eleger métodos pretensamente quantitativos para construir suas decisões.
A mesma crítica pode ser endereçada ao direito penal, quando, ao se querer a condenação de algum inimigo, achamos correta qualquer flexibilização ao direito vigente.
Todas essas abordagens devem ser refutadas porque:
(i) sequer encontram previsão em regra de direito positivo;
(ii) porque se deve evitar valores customizados para chamar de seus;
(iii) em virtude de seu caráter antidemocrático (por não ser regra de direito positivo que tenha passado pelo crivo da representação popular);
(iv) por ser impossível estabelecer, aprioristicamente, uma metarregra que defina o que deve prevalecer no cálculo consequencialista (afinal, cada consequencialista tem a sua preferência e elas são tão isentas quanto escolher o time de futebol para o qual se vai torcer).
Apenas para utilizar um exemplo totalmente distinto e muito mais sério do que o que aqui tratado, basta lembrar o regime nazista, em que umas das muitas deturpações jurídicas foi a adoção de um princípio jurídico acima dos demais (Führerprinzip[5]), que foi ponderado de forma a prevalecer sobre todos os outros, incluindo regras jurídicas de natureza penal[6].
Assim, há de se apartar a argumentação com base na teleologia das normas jurídicas, de um lado, do consequencialismo jurídico ou até mesmo do ativismo judicial, de outro.
O debate aqui proposto, como dito acima, tem pouco a ver com essa ou aquela decisão sobre esse ou aquele tributo. Mas remonta ao desafio de se estudar quais argumentos podem exercer a função de fundamentação de decisões judiciais.
* Texto atualizado às 11h45 do dia 30/7/2017.
[1] Lembre-se, nesse sentido, o capítulo final da Teoria Pura do Direito. Cf. Hans KELSEN, Teoria Pura do Direito, Coimbra: Armênio Amado, 1984, p. 463-473. Não na formação da moldura da norma (atividade de conhecimento), mas na escolha das hipóteses pertencentes dessa moldura, justamente quando ocorre o ato de vontade. In: Hans KELSEN, Teoria Pura do Direito, p. 469-471.
[2] Ludwig WITTGENSTEIN, Philosophische Untersuchungen. Werkausgabe, Band 1, Frankfurt am Maim: Suhrkamp Verlag, 1984, § 217.
[3] Nesse sentido, por exemplo, António ZILHÃO, Linguagem da Filosofia e Filosofia da Linguagem: Estudos sobre Wittgenstein, Lisboa: Colibri, 1993, p. 172-176.
[4] Estamos bem conscientes do debate atual entre positivismo em sentido estrito e moralismo jurídico (ou pós-positivismo brasileiro neoconstitucionalista) e da série de questões de ordem levantadas para criticar o positivismo. Por uma questão de delimitação, não abordaremos o tema, deixando claro, contudo, nossa identificação com as críticas ao neoconstitucionalismo e, sobretudo, ao argumento do reductio ad Hitlerum. Para tanto, cite-se a excelente literatura brasileira sobre isso.
Nesse sentido, ver Dimitri DIMOULIS, Positivismo Jurídico: Introdução a uma Teoria do Direito e Defesa do Pragmatismo Jurídico-Político, São Paulo: Método, 2006; Dimitri DIMOULIS e Soraya Gasparetto LUNARDI, “O Positivismo Jurídico diante da Principiologia”, in Teoria do Direito Neoconstitucional: Superação ou Reconstrução do Positivismo Jurídico?, org. Dimitri Dimoulis e Écio Oto Duarte, São Paulo: Método, 2008, p. 179-197; André Ramos TAVARES, “Interpretação Jurídica em Hart e Kelsen: uma Postura (Anti)realista?”, in Teoria do Direito Neoconstitucional: Superação ou Reconstrução do Positivismo Jurídico?, org. Dimitri Dimoulis e Écio Oto Duarte, São Paulo: Método, 2008, p. 129-157; Lenio Luiz STRECK, “A Crise Paradigmática do Direito no Contexto da Resistência Positivista ao (Neo)Constitucionalismo”, in Vinte Anos da Constituição Federal de 1988, org. Cláudio Pereira de Souza Neto, Daniel Sarmento e Gustavo Binenbojm, Lumen Juris, 2009, p. 203-228; Humberto Bergmann ÁVILA, “Neoconstitucionalismo: entre a ‘Ciência do Direito’ e o “Direito da Ciência”, in Vinte Anos da Constituição Federal de 1988, org. Cláudio Pereira de Souza Neto, Daniel Sarmento e Gustavo Binenbojm, Lumen Juris, 2009, p. 187-202.
[5] Como decidiria o Führer no lugar do aplicador, ainda que em detrimento de lei?
[6] O Judiciário alemão atuou a partir de um consequencialismo normativo forte e ativista, ou seja, a partir de uma interpretação sem limites, em detrimento do direito posto. A crítica ao lugar comum desenvolvido por moralistas jurídicos contemporâneos (pretensamente com base em Gustav Radbruch) pode ser lida em Bernd RÜTHERS, Die unbegrenzte Auslegung: Zum Wandel der Privatrechtsordnung im Nationalsozialismus, Tübingen: Mohr Siebeck, 2005; Mario G. LOSANO, Sistema e Estrutura no Direito. Volume 2: O Século XX, São Paulo: Martins Fontes, 2010, p. 233-242; Dimitri DIMOULIS, Positivismo Jurídico: Introdução a uma Teoria do Direito e Defesa do Pragmatismo Jurídico-Político, p. 257-264.
José Maria Arruda de Andrade é professor associado de Direito Econômico e Economia Política da USP, livre-docente e doutor pela FDUSP, sócio da Gaia, Silva, Gaede & Associados. Foi secretário-adjunto da secretaria de Política Econômica do Ministério da Fazenda e pesquisador visitante no Instituto Max-Planck de Inovação e Concorrência em Munique (Alemanha).
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Advogado em São José do Rio Preto