Opinião: Receita não pode criar conduta criminosa não prevista em lei
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A Receita Federal disponibilizou Consulta Pública 8/2017, que durou até o dia 6 deste mês, visando a promover participação popular acerca de texto de Instrução Normativa a ser editada por ela. Mal entrou em vigor, a norma causa incômodo na sociedade civil, sendo objeto de algumas notícias de grandes canais de comunicação. A bem da verdade, o texto não inaugura, per se, qualquer obrigação ao cidadão, uma vez que trata de tema já vigente. O seu ineditismo, todavia, cinge-se à mudança de perspectiva da obrigação já existente (e pouco difundida) e à criação de novo instrumento através do qual se cumprirá tal prestação. O presente ensaio destina-se à abordagem das razões para a propositura do texto normativo em comento, os institutos em si contidos, bem como acerca do regramento legal já existente em nosso país e a distinção comportada na instrução-embrião. Por fim, far-se-á análise crítica acerca dos eventuais impactos vislumbrados com a entrada em vigor do texto legal em apreço.
Falar de globalização e a evolução tecnológica, de tão imbricadas que já se encontram na realidade humana, tornam-se discurso quase obsoleto e desinteressante. Ainda assim, imprescindível se observar que estes dois fenômenos comportam alta relevância ao Direito – que deve acompanhar o ritmo de evolução social, sendo que, todavia, com a alta velocidade imprimida por estes fenômenos, a ciência jurídica, por vezes, torna-se claudicante e trôpega, incapaz de desenvolver-se com mesma fluidez. Sob este prisma, merece destaque o Direito Penal, uma vez que um dos seus pilares consiste no princípio da legalidade, materializado no axioma nullum crimen, nulla poena sine lege praevia. Ou seja, não há crime sem lei anterior que o defina, como incorporou o Constituinte de 1988, no artigo 5º, XXXIX, da Lei Maior e, desta forma, em virtude da garantia fundamental aí expressa, o Direito Penal é um dos ramos mais sensíveis à evolução humana, pois novas condutas surgem a cada instante, com o desafio de definir-se ou enquadrar-se em conduta previamente proibida pelo ordenamento jurídico-penal.
No que diz respeito à criminalidade, sobretudo a rotulada “criminalidade de colarinho branco”, têm-se condutas mais complexas, que, deste modo, demandam investigações mais acuradas e aparato legal condizente a proporcionar estes instrumentos aos órgãos de combate ao crime. Este, portanto, é o cenário atual, visto e vivido pela humanidade, mormente a sociedade brasileira, que se assusta com o alto grau de organização das condutas criminosas perpetradas, especialmente, na operação “lava jato”. Eis a razão da edição da Instrução Normativa pela RFB, que se encontra expressa na sua Exposição de Motivos, qual seja, mormente, voltar os holofotes ao pagador e seus recursos, seguindo a política do “follow the money” que se tornou famosa no território estadunidense.
Desta forma, pretende a autoridade fazendária, voltando-se a combater, sobretudo, o delito de lavagem de capitais, atribuir a todo e qualquer particular (pessoa física ou jurídica) a obrigação de comunicar o recebimento de valores em espécie (que totalizem, num único mês e de uma mesma fonte, ao menos R$ 30 mil) através de preenchimento de Declaração de Operações Liquidadas com Moedas em Espécie (DME) – artigos 2º, 3º e 4º da Instrução Normativa. A monta paga em espécie pode advir de: alienação, cessão – onerosa ou gratuita – de quaisquer bens e direitos, prestação de serviços, aluguel ou outras operações que envolvam transferência de moeda em espécie (artigo 1º). Note-se que a amplitude pretendida pela RFB é desnudada na última hipótese de incidência da obrigação – “outras operações que envolvam transferência de moeda em espécie” – pois consiste em verdadeira carta branca à autoridade fazendária. Ou seja, em bom vernáculo, irrestritamente, ao se receberem R$ 30 mil (ou mais) em espécie, num espaço de tempo de um mês, a DME deve ser preenchida e a informação repassada à Receita Federal. Tratam-se de três filtros implícitos (verdadeiramente, apenas dois): o primeiro consiste no recebimento do valor em espécie, o segundo, este valor ser de ao menos R$ 30 mil e o terceiro, a atividade originária que motivou tal pagamento (amplo, como visto).
É de se notar que o preenchimento da DME não se dá com o fito de recolhimento tributário, propriamente. Não se está, no formulário em comento, apontando à RFB ocorrência de fato gerador, necessariamente. Isto seria mero efeito acessório, uma vez que, por exemplo, não se suplantou a obrigação do escorreito preenchimento da declaração de Imposto de Renda, que é anual. Aqui, tem-se outro objetivo, tanto assim, a DME deverá ser enviada até o último dia do mês seguinte à concreção da operação em espécie (artigo 5º).
A busca de informações sobre o curso do dinheiro, com vistas a aferir a transparência dos fluxos financeiros que ingressam na economia é, inclusive, o propósito da tipificação do delito de lavagem de capitais. A grosso modo, o seu conceito encontra-se expresso na semântica do título: têm-se ativos “sujos” (adquiridos pela prática de infração penal) e, através de determinadas condutas, o agente visa a regularizá-los, convertendo-os em seu proveito. A conduta pode tornar-se espécie de aresta deixada pelo criminoso, a qual permite investigação pela operação suspeita do ato de lavagem. A título meramente ilustrativo, tem-se um caso hipotético: um sujeito, de vida pública e político, aufere, por corrupção, expressiva quantia. Por óbvio, sendo o salário dele conhecido por todos em razão da transparência, não poderia nosso autor fictício declarar a quantia às autoridades correspondentes e fazer o uso dela sem levantar suspeita. O uso indiscriminado seria, na verdade, a assinatura do seu reconhecimento de culpa. Destarte, deverá ele utilizar-se de artifícios, em sua maioria, fraudulentos, a fim de borrar o rastro dos valores, desvinculando-o da sua origem criminosa. Tais artifícios, quando representarem ocultação ou dissimulação de ativos, constituiriam a consumação do crime aludido.
Neste viés, é possível verificar que, a rigor, autores de lavagem de capitais aproveitam-se de particulares para facilitar a sua prática e, por conseguinte, dificultar a investigação, como é o caso de joalherias e bens de luxo de modo geral. Como se tratam de operações que, em princípio, ocorrem no seio das relações privadas, e, em regra, restrita ao conhecimento dos demais, têm-se dificuldades investigativas em relação a estes fatos.
O Estado, percebendo tal aresta e reconhecendo a hipossuficiência do seu aparato investigador, passou a atribuir, aos particulares (que não tenham propriamente vinculação com a origem criminosa dos ativos, mas que realizem atividades econômicas estratégicas à perfectibilização do delito), que cumprissem “mecanismos de controle”. No caso específico da Lei 9.613, desde o seu nascedouro em 1998, mas, especialmente com a reforma promovida pela Lei 12.683/12, o legislador incumbiu alguns particulares, cuja atividade econômica seja estratégica à realização de comportamentos típicos de lavagem de capitais, da obrigação de verificar, controlar e comunicar operações suspeitas às autoridades de controle, como o Conselho de Controle de Atividades Financeiras. Tal obrigação, portanto, resulta na transferência de responsabilidades tipicamente estatais aos particulares, e originou-se da necessidade que o Estado tem de somar mecanismos de coibição ao delito em apreço, que, por sua própria natureza, é constituído por condutas pulverizadas e de difícil constatação.
A medida de delegação de competência aos particulares apresenta-se, em princípio, como mecanismo de prevenção de irregularidades. Nada obstante, a referida imposição de obrigações tem implicações severas no Direito Repressivo, seja no âmbito administrativo, como, também, no âmbito do próprio Direito Penal. Com efeito, as obrigações relacionadas aos mecanismos de controle são responsáveis pela fixação dos limites do risco permitido para o exercício de determinadas atividades econômicas, cujo descumprimento pode conduzir, no caso de condutas ativas[1], à responsabilização dos particulares que colaboraram com a conduta do agente, a título de coautoria ou participação, preenchidos os requisitos do conceito analítico de crime.
Voltando-se à Instrução Normativa, que se insere neste contexto de delegação de atividades tipicamente estatais aos particulares, a sua especialidade encontra-se em estrear uma obrigação de comunicar-se a operação suspeita à Receita Federal, através do instrumento da DME. Preveem-se, igualmente, sanções administrativas de cunho pecuniário, contudo, o que mais chama a atenção é a expressa ameaça de enquadramento do sujeito que não preenche a DME como autor de lavagem de capitais, ou mesmo de crime contra a Ordem Tributária, na modalidade “concorrente” (artigo 10). Imperioso fazerem-se considerações acerca do dispositivo, que, caso seja aprovado, poderá causar deletérios efeitos na prática criminal.
A primeira delas cinge-se ao princípio da legalidade, insculpido no artigo 5º, inciso XXXIX, bem como positivado no artigo 22, I, ambos da CF/88, segundo os quais apenas podem ser estabelecidos crimes e penas, por meio de lei, submetida ao critério da reserva formal. Em outros termos, apenas o Poder Legislativo da União tem a competência para criar leis incriminadoras e isto se reveste de segurança jurídica, notadamente em tempos de arbítrio. Assim, não pode o legislador infraconstitucional e infralegal estabelecer, ao seu alvedrio, comportamentos criminosos, pois está expressamente vedado a fazê-lo.
A única função admissível desta instrução, ainda que não isenta de críticas, seria a de balizar a interpretação normativa de expressões já presentes em tipos penais, e que permitam algum tipo de abertura semântica, como no caso da lavagem de capitais e dos crimes tributários. No que tange a estes, importante ter em mente que são crimes devidamente dispostos em tipos penais específicos (estabelecidos na Lei 8.137/90 e nos artigos 169-A e 337-A do CP), que servem de limite ao poder punitivo estatal (função de garantia do tipo).
No crime positivado no artigo 1º da Lei 8.137/90, tem-se que constitui resultado proibido a redução ou supressão de tributos por meio da realização das condutas previstas em seus incisos. As condutas listadas, basicamente, representam a omissão de declarações ou prestação de declarações falsas às autoridades fazendárias ou, ainda, a realização de fraudes em documentos essenciais às negociações ou à regularidade da contabilidade da empresa. A omissão torna-se relevante, pois tais documentos têm o condão de constituir o crédito tributário.
Assim sendo, tem-se que a presente Instrução Normativa, ao contrário do que aparenta transparecer, não pode criar situações de punibilidade estranhas à moldura do tipo penal. Em outros termos, não pode a norma embrionária, por meio da DME que não serve à constituição de crédito tributário, pretender incriminar aquele que não declare os valores, mas o faça, entretanto, nos documentos fiscais essenciais, a exemplo da Declaração de Imposto de Renda. Como o recebimento de valores em espécie não constitui fato gerador, e, ainda, como a DME não se presta a servir de elemento para o lançamento tributário, a sua mera omissão, quando desacompanhada da omissão nas declarações aptas à constituição do crédito, não pode constituir crime e, por conseguinte, não pode subsidiar a representação fiscal para fins penais.
De igual modo, tampouco pode configurar a modalidade do artigo 2º, I, da Lei 8.137/90, concebida, pela maioria da doutrina, como crime formal. Isto porque, caso sejam prestadas as informações por via do instrumento adequado à constituição do crédito, não estará configurado o elemento subjetivo especial do tipo penal em apreço, consistente na intenção de eximir-se, total ou parcialmente, do pagamento de tributo.
Para concluir a questão relacionada aos crimes tributários, deve-se assinalar que tampouco a omissão na DME pode ser vista, indistintamente, como “concorrência” em eventual crime tributário do terceiro pagador. Isto porque são crimes próprios do contribuinte. Para que se comece a ventilar a existência de crime tributário, mister se faz que o terceiro, pagador dos valores em espécie, tenha, efetivamente, omitido as suas receitas em documentos específicos e aptos à constituição do crédito tributário. Caso os tenha declarado, não se pode cuidar de sonegação. Caso o sujeito pagador dos valores em espécie tenha omitido, tampouco é possível, automaticamente, falar-se em crime por parte do sujeito que não declarou a DME, pois, para que haja a concorrência de terceiros em crime próprio, é imprescindível a existência de liame subjetivo entre ambos, o que não é fruto de presunção.
Passa-se aos crimes de lavagem de capitais. Os sujeitos obrigados da Lei de Lavagem, ao realizar atividades econômicas fora dos limites do risco permitido, ou seja, sem colaborar com a política de prevenção à lavagem de capitais, consubstanciada nas obrigações de vigilância e comunicação de operações suspeitas, podem encaixar-se na moldura do crime.
O Coaf já regulamenta alguns setores da economia, por meio de suas resoluções, e, no caso de setores que possuem órgão regulador específico, as obrigações de colaboração com a política antilavagem de capitais são previstas em atos normativos do órgão.
Deste modo, não pode a Instrução Normativa da RFB, para fins do disposto na Lei 9.613/98, ampliar o rol de sujeitos obrigados em seu artigo 10, bem como estabelecer condutas criminosas estranhas às molduras do tipo penal. Ou seja, é inadmissível que se criem, por instrução normativa, comportamentos criminosos fora da margem do tipo penal da Lei de Lavagem de Capitais, pois, se assim fosse, estaria usurpando a competência do Poder Legislativo da União, constitucionalmente estabelecida. Assim, caso algum agente econômico não se encontre no rol dos sujeitos obrigados a colaborar com a Lavagem de Capitais e, ainda, caso este agente não envie as informações na DME, isto jamais poderá configurar qualquer ato de lavagem de capitais, ao contrário do que quer fazer valer a RFB.
Encontramo-nos, inegavelmente, em tempos de instabilidade e em busca – talvez no afã de atender aos supostos anseios da sociedade civil – de alternativas que se mostrem idôneas a coibir práticas delitivas graves. Ainda assim, a iniciativa não deve ser açodada, tampouco deve açoitar as garantias fundamentais do Estado Democrático de Direito, a fim de que não se busquem evitar práticas delitivas com novas irregularidades, através de arbitrariedades e ofensas às conquistas tão caras expressas na Lei Maior de 1988.
Ilana Martins é doutora em Direito Penal pela USP. Mestre em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia; Pós-graduada em Direito Penal Econômico pela Universidad Castilla-La Mancha (Toledo, Espanha); Pós-graduada em Direito Penal Econômico pelo IBCCRIM; Professora Adjunta de Direito Penal da Universidade Salvador (UNIFACS); Advogada Criminalista.
Brenno Cavalcanti é mestre em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia; Pós Graduado em Ciências Criminais pelo Juspodivm; Advogado Criminalista.
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Advogado em São José do Rio Preto