Opinião: Avanço sobre as bases tributárias estaduais é inaceitável
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A Constituição Federal, em atenção ao seu intuito democrático-descentralizador, firmou, exaustivamente, a competência tributária dos entes federados. O poder de criar, instituir, majorar ou reduzir tributos é, assim, regra constitucional rígida sob a qual se assenta o federalismo fiscal brasileiro, que assegura às pessoas políticas a autonomia política e financeira necessária. O federalismo cooperativo proclamado, portanto, propicia o convívio harmônico dos entes federados, de forma que a cada um caiba a parcela de recursos a ele destinada pela Constituição.
Nesse compasso, o artigo 155, I a III, estabelece que compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre: I- transmissão causa mortis e doação, de quaisquer bens ou direitos (ITCMD); II- operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior (ICMS); III- propriedade de veículos automotores (IPVA). Da mesma forma, nos termos do artigo 155, §1º, IV, compete ao Senado Federal estabelecer a alíquota máxima do ITCMD a ser aplicada, cabendo aos estados e ao Distrito Federal, por meio de lei estadual ou distrital, definir qual a alíquota será imposta no âmbito do ente federado.
Reafirmando a divisão da competência tributária e visando garantir o pacto federativo, a Constituição Federal prevê no artigo 154, I,[1] que a União não poderá instituir novos impostos que tenham fato gerador ou base de cálculo próprios dos discriminados na Constituição. Nesse sentido, em tese, a União não pode instituir tributo que tenha o mesmo fato gerador ou base de cálculo dos impostos de competência dos estados. Trocando em miúdos, manda a Constituição que a União não pode invadir a competência tributária dos estados.
Entretanto, conforme se verifica do PL 5.205/16, de autoria do Executivo federal, foi encaminhada à Câmara dos Deputados projeto de lei com proposta de que sejam instituídas alíquotas progressivas de Imposto de Renda sobre heranças que ultrapassem determinado valor (acima de R$ 5 milhões), incluindo antecipação de legítima e doações.
A proposta é uma verdadeira invasão da competência tributária dos Estados, uma vez que o fato gerador a ensejar a aplicação das alíquotas é o mesmo do ITCMD, e, como tal, não pode acontecer, em face das limitações cravadas no texto constitucional. A se permitir a tributação pretendida pela União, estaríamos diante da bitributação de heranças e doações, em violação ao dispositivo constitucional já citado. Tal como se deu com a Cofins e PIS, verdadeiros tributos sobre o consumo apropriados pela União, pretende o governo federal, agora, desequilibrar ainda mais o pacto federativo, centralizando poder e receitas, invadindo a esfera de competência tributária dos estados no que diz respeito aos tributos sobre heranças e doações.
O PL 5.205/16 está tramitando na Câmara dos Deputados apensado ao PL 6.094/13, que trata da correção da tabela do Imposto de Renda, juntamente com outros projetos de lei de semelhante teor, que também tratam da correção do valor de imóveis para fins de apuração dos ganhos de capital. Além do PL 5.205, o PL 5.308/16, igualmente apensado ao PL 6.094/13, trata da tributação de heranças e doações.
Até esta quinta-feira (6/7), o PL 6.094/13 está em tramitação na Câmara e teve a última movimentação em 8/5/2017, quando foi encaminhado (com seus apensados) às Comissões de Finanças e Tributação e Constituição e Justiça para parecer. A proposição está sujeita à apreciação conclusiva das comissões, nos termos do artigo 24, II, do Regimento da Câmara dos Deputados, o qual dispensa a competência do Plenário e tramita em regime de prioridade. Dada a peculiaridade de sua tramitação, é imperioso que haja o adequado acompanhamento da matéria na Câmara, a fim de que não sejam os Estados surpreendidos com a aprovação conclusiva nas Comissões de matéria tão importante para as finanças estaduais, sem apreciação do Plenário, por força de regra inserta no Regimento Interno da Câmara.
Mais preocupante ainda é que o problema não se encerra nessa casa do Congresso Nacional. Tramita no Senado Federal a PEC 96/15 pela qual se outorga à União competência para instituir adicional ao ITCMD, com a finalidade de tributar grandes heranças e doações, destinando o produto da sua arrecadação ao Fundo Nacional de Desenvolvimento Regional. Em sua redação original, a alíquota máxima não poderia ser “superior à mais elevada do imposto de renda da pessoa física”, vale dizer, 27,5%.
Na CCJ o senador Roberto Rocha, apresentou emenda propondo reduzir a alíquota máxima do imposto adicional àquela prevista para o ITCMD (atualmente fixada em 8% pela Resolução 9/92, do Senado Federal). A matéria encontra-se com a relatoria, sem tramitação desde 6/10/2016. O adicional proposto pela PEC 96/15, sem sombra de dúvidas, é flagrantemente inconstitucional, por ofender frontalmente o pacto federativo. Trata-se de mais uma usurpação da competência tributária dos Estados.[2]
De fato, à medida em que a União avança por sobre a base tributária dos Estados, fica afetada diretamente a capacidade de autogestão desses entes federados e, também, resta evidente a violação ao federalismo fiscal instituído pela Constituição Federal.
Na justificativa apresentada pelos senadores que subscreveram a PEC, há referência à subutilização do potencial arrecadatório de ITCMD pelos Estados, a comparação com outros países e a necessidade de obtenção de recursos para operacionalizar um fundo nacional de desenvolvimento regional.
“A finalidade da presente Proposta de Emenda à Constituição é permitir a criação de uma fonte de recursos que possa viabilizar a operacionalização do Fundo Nacional de Desenvolvimento Regional (FNDR), que subsidiará a Política Nacional de Desenvolvimento Regional.
Trata-se de autorizar a instituição de um adicional ao imposto de transmissão causa mortis e doação (ITCMD) incidente sobre grandes riquezas, a ser administrado pela União, a ser denominado Imposto sobre Grandes Heranças e Doações. Atualmente, as grandes fortunas transmitidas sofrem incidência de alíquotas bastante inferiores às praticadas no restante do mundo.
Somente a título de comparação, as alíquotas desse imposto, no Reino Unido, vão de 0 a 40%; nos Estados Unidos, de 0 a 60%, na França, de 5% a 60%, na Itália, de 3% a 27%, e na Alemanha, de 0 a 70%. Atualmente, a Resolução nº 9, de 1992, do Senado Federal estabelece a alíquota máxima de 8% para esses fatos geradores. Ainda assim, somente quatro Estados a praticam em seu limite máximo, e de maneira progressiva (Ceará, Bahia, Santa Catarina e Rio Grande do Sul). Logo, já existe um subaproveitamento do potencial arrecadatório desses tributos, mesmo à luz da atual legislação.” (grifo nosso)
A Constituição Federal não autoriza a instituição de impostos adicionais que tenham a mesma base de cálculo de impostos cuja competência tenha sido atribuída a outro ente federado. Em apenas duas situações a União poderá se utilizar de normas extraordinárias para criação de impostos. A primeira está inserida no artigo 147, da Constituição Federal, que trata da instituição dos impostos dos territórios federais; a outra está prevista no artigo 154, II, qual seja, na iminência ou em caso de guerra, o que não ocorre na situação ora em comento. Conforme observa Roque Antônio Carrazza,[3] tais dispositivos constitucionais tratam de situações excepcionalíssimas, o “que só vêm confirmar a regra geral”.
No momento de crise vivido pelo país, é mister que sejam observados os limites constitucionais impostos à competência para tributar. Por maior que seja o desejo por recursos por parte da tecnoburocracia federal, a democracia reclama o equilíbrio federativo. O poder foi descentralizado pela Constituição Federal e da separação vertical dos poderes depende o ideal democrático. Não se admite mais que o pacto federativo seja constantemente ultrajado. O princípio federativo, em garantia ao intento democrático-descentralizador da Constituição, refuta a invasão de competência estadual pela União Federal.
O ITCMD é um imposto cuja instituição e cobrança é outorgada aos estados e DF, de forma que o aumento nas alíquotas e na arrecadação de tal tributo só a estes compete e aproveita. O fato de os estados não aplicarem a alíquota máxima hoje permitida pela Resolução do Senado, não assegura à União usurpar a competência e trazer para si o fruto da tributação, haja vista que a competência tributária é indelegável e irrenunciável, não podendo ser apropriada por outro ente federado apenas por desuso (visto que não há que se falar em caducidade da competência tributária).
Dessa forma, cabe aos estados, por meio de seus legisladores, definirem qual a alíquota deverá prevalecer em seu âmbito de atuação, observada a alíquota máxima definida pela Resolução 9/1992, do Senado, nos termos do artigo 150, 1º, IV, da CR/88.
Cientes da crise que assola os Estados e de que o ITCMD é um imposto com certa margem para o aumento de alíquotas, os Secretários Estaduais de Fazenda reunidos no Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz) decidiram, por maioria, encaminhar o Ofício Consefaz 11/15, de 10 de setembro de 2015, solicitando a alteração da Resolução do Senado 9/92. Pela proposta encaminhada pelo Consefaz, a alíquota máxima do ITCMD, de que trata a alínea “a”, inciso I do caput do artigo 155 da Constituição Federal, passaria para 20%, visando o incremento e a recomposição das receitas tributárias das unidades da Federação, tendo em vista que o pretendido aumento impactaria em menor grau as relações econômicas, por se tratar de “sobretaxa destinada àqueles mais aquinhoados”, sujeitos aos impostos diretos.
Até o momento não se tem notícia de qualquer movimentação no Senado Federal com a finalidade de atender ao pleito dos representantes das fazendas estaduais, efetuado em 2015. Ao contrário, como já demonstrado anteriormente, o Senado propôs e avalia a PEC 96/2015, que outorga à União a instituição do adicional ao ITCMD, em movimento contrário ao interesse dos Estados e em confronto com as regras e princípios constitucionais. Estaria o legislador nacional tão somente atendendo as ordens do Executivo federal?
De fato, no Brasil, a carga tributária sobre heranças é bastante incipiente se compararmos com outros países, pois temos uma alíquota máxima de 8% fixada pelo Senado. Estudo feito pela consultoria EY em 2014 revelou que o Brasil é um dos países com a menor tributação sobre a herança. A alíquota média cobrada pelos Fiscos estaduais no país é de 3,86% sobre o valor herdado o que leva ao entendimento de que pode ser revista diante de diversos critérios que podem ser utilizados para alterar o valor tributado, ampliar a arrecadação e contribuir com uma distribuição mais justa do capital no momento da transmissão intergeracional.
A título de exemplo, a progressividade é um critério muito utilizado em países democráticos e capitalistas como Japão, França e Alemanha, com alíquotas bem maiores que a brasileira. No caso da Alemanha e da França, além da progressividade da alíquota em razão do valor da herança, há também uma diferenciação conforme o grau de parentesco do beneficiário de forma que quanto mais distante for o parentesco, maiores as alíquotas a serem aplicadas. No Reino Unido, a tributação sobre heranças tem alíquota de 40%, sempre que o patrimônio ultrapassar 325 mil libras, mas tal alíquota pode ser reduzida para 36% caso haja destinação de 10% do patrimônio para doações de caridade. Países desenvolvidos como Austrália e Noruega, no entanto, não têm nenhum tipo de tributação sobre a herança. Mas, em contrapartida, cobram impostos elevados sobre a renda dos seus contribuintes. No sistema tributário norueguês 48% da arrecadação é relativa a tributos que incidem sobre renda, lucro e ganho de capital, segundo dados da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Já na Austrália, esse percentual é de 59%, de acordo os números disponíveis na OCDE, referentes a 2011. Dessa forma, australianos e noruegueses pagam altos impostos diretos enquanto vivos, mas os seus herdeiros ficam isentos no momento da transferência do patrimônio.[4]
No Brasil, a divisão dos tributos é inversa e a receita se assenta por sobre os impostos indiretos, que incidem sobre o consumo de bens e serviços (49,7% da arrecadação total do país). Já os impostos diretos são responsáveis por apenas 17,8% do total levantando pelo Fisco e as taxas sobre propriedade, 3,8%, o que onera bastante as classes mais baixas.
Entretanto, o modelo tributário constitucionalmente firmado prevê a tributação de doações e heranças por meio do ITCMD, incidente sobre os bens do doador (ou sobre o espólio), e não sobre o beneficiário. A tributação de heranças e doações, portanto, deve ter sua receita destinada aos Estados. Em outras palavras, se há espaço para o alargamento dessa base tributária, seu aproveitamento deve ser aplicado aos entes federados que detém a competência para instituir o correspondente tributo. O avanço da União sobre as bases tributárias estaduais é inaceitável e inconstitucional e fragiliza ainda mais o pacto federativo cravado pela Constituição Federal.
A pergunta que resta é a seguinte: até quando os Estados e Municípios assistirão o assalto à democracia e ao federalismo efetuado pela tecnoburocracia encastelada em Brasília, com o respaldo dos parlamentares, que são constantemente atropelados pelo rolo compressor do Executivo federal? Certo, porém, é que, com os arranhões ao pacto federativo, perde a democracia e afogam-se as esperanças por um Brasil melhor!
Onofre Alves Batista Júnior é advogado-geral de Minas Gerais, mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa e doutor em Direito pela UFMG, pós-doutorado em Direito (Democracia e Direitos Humanos) pela Universidade de Coimbra e professor de Direito Público da UFMG.
Marize Maria Gabriel de Almeida Pereira da Cunha é assistente do Advogado-Geral do Estado de Minas Gerais. Especialista em Direito Público pela Faculdade de Direito Milton Campos.
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Advogado em São José do Rio Preto