Falsos dilemas prejudicam a defesa da Constituição e dos direitos sociais
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No último dia 5 de outubro, celebramos o 29º aniversário da nossa Constituição Cidadã. É preciso revisitar seus avanços e falhas históricas, para bem avaliar seus desafios presentes e prospectivos.
Arrisco-me a dizer que atualmente poucas são as hipóteses de controvérsia que se equiparam, em perspectiva estrutural para a (sobre)vivência do nosso pacto constitucional, à aparente tensão, para alguns uma quase contraposição maniqueísta, entre financiamento e gestão de direitos sociais.
Os extremos argumentativos titularizam vieses empobrecidos de análise, na medida em que ditam uma pretensa ordem de prioridades de ação como se fosse possível apartar uma coisa da outra. Ao meu sentir, é falso o dilema de quem prega ser necessário primeiro aprimorar a gestão (no que se inclui combater a corrupção) para depois assegurar rota progressiva de financiamento na promoção dos direitos fundamentais, ou vice-versa.
Precisamos assumir, sem peias ideológicas, que mais financiamento e melhor gestão são ambos desafios instrumentais — igualmente prementes — para cumprirmos os fins constitucionais de promoção dos direitos fundamentais e de erradicação das desigualdades sociais e regionais.
Do ponto de vista do financiamento, o socialmente almejado e constitucionalmente definido é que ele seja proporcionalmente progressivo conforme o nível de riqueza do país e conforme a arrecadação estatal. Por outro lado, a noção de melhor gestão, ademais da eficiência, economicidade e efetividade no exame dos seus custos e resultados, absorve também e necessariamente as republicanas agendas da responsabilidade fiscal e da proteção ao erário contra a corrupção.
Quem defende direitos sociais não pode clamar apenas e tão somente por mais recursos. Temos de enfrentar nossos incomensuráveis gargalos de gestão (marcada pela inépcia, que na maioria das vezes está associada ao patrimonialismo) e também corrigir os sérios gargalos de pactuação federativa que afetam a má qualidade de todo o ciclo das políticas públicas e, por óbvio, dos gastos públicos empreendidos ali. Tampouco é racionalmente crível ser possível aprimorar a gestão sem maior e mais estável fluxo governamental de custeio, que permita avançar em rotas tão basilares como a execução aderente ao planejado, a informatização, os processos de seleção, manutenção e avaliação por desempenho de profissionais mais qualificados (sem nos olvidarmos do controle de pessoal ocioso[1] para que se evitam inchaços no quadro de pessoal), além dos insumos mínimos para realização dos serviços públicos.
Nossas carências são severamente mais complexas e não comportam a infantil polarização entre, de um lado, a prevenção e o combate à corrupção (no que se inclui o devido zelo para com a responsabilidade fiscal e o equilíbrio intertemporal nas contas públicas) e, de outro, a realização de direitos fundamentais, sobretudo os sociais, em busca da redução da nossa extrema desigualdade real[2].
Para retomar esse aparente impasse em outro patamar mais qualificado de reflexão, é interessante trazer à tona o exemplo do forte impulso descentralizador da nossa Constituição Cidadã. Ao longo das quase três décadas do nosso arranjo tridimensional de federalismo, consolidamos um mosaico heterogêneo que comporta nada menos que 5570 municípios e 27 estados (incluído o DF).
As repercussões político-administrativas e fiscais do modelo federativo são extremamente preocupantes e ensejam grande parte das críticas[3] dirigidas tanto à falta/fragilidade de gestão, quanto à insuficiência de financiamento nas políticas públicas asseguradoras de direitos fundamentais.
Recentemente a Secretaria do Tesouro Nacional lançou seu Boletim Balanço em Foco[4], onde constam dados do “Balanço do Setor Público Nacional” relativos a 2016, segundo os quais, em quase 82% dos municípios brasileiros, as transferências federativas respondem por 75% das suas respectivas receitas orçamentárias globais. Tamanha é a dependência que apenas cerca de 2% dos municípios possui receita própria superior ao saldo das transferências. Quando observamos os Estados, apenas sete possuíam receitas próprias francamente superiores às transferências (ou seja, quando as transferências respondem por fração igual ou inferior a 25% de sua receita orçamentária total).
Ora, a expansão vertiginosa de entes federados sem suficiente viabilidade econômica[5] e, por vezes, sem bases histórico-sociais e sem ganho mínimo de escala que lhes justificassem a existência, direta ou indiretamente, obriga-nos a superar o “mito da descentralização”, tal como bem nos provocava Marta Arretche[6], como rota supostamente necessária de maior eficiência e democratização para a consecução das políticas públicas.
Para a autora em comento, a democratização do ciclo das políticas públicas e, por conseguinte, sua menor exposição a risco de corrupção “depende menos do âmbito no qual se tomam decisões e mais da natureza das instituições delas encarregadas”, já que, ainda segundo Arretche,
não há uma relação necessária entre descentralização e redução do clientelismo: este pode ocorrer em qualquer escala de operações. Na verdade, a redução do clientelismo supõe a construção de instituições que garantam a capacidade de enforcement do governo e a capacidade de controle dos cidadãos sobre as ações deste último.
Ao lado de uma maior regionalização na oferta de serviços públicos aderente ao planejamento setorial, urge reconhecermos o papel central das instituições e da sua interlocução necessária com os cidadãos para avançarmos no nosso estágio de debates sobre o nível de efetividade e accountability dos direitos fundamentais. Ocorre, contudo, que essas provavelmente são algumas das nossas agendas de evolução constitucional mais sonegadas ou preteridas ao longo desses 29 anos.
Multiplicamos os custos da máquina estatal em um arranjo federativo disfuncional e tendente a diversos tipos de compadrios e de guerras fiscais na execução de políticas públicas, cuja concepção originária dada pelo Constituinte de 1988 evidentemente reclama cooperação entre os entes.
Diversas têm sido as mazelas da governança federativa, por exemplo, no âmbito da educação básica obrigatória, onde, por sinal, falta assegurar acesso e garantir permanência na escola para 2,5 milhões[7] de crianças e jovens de 4 a 17 anos, bem como falta garantir creches para 7,7 milhões[8] de crianças de 0 a 3 anos de idade. Se somarmos a isso o fato de que a maioria dos estados e municípios brasileiros[9] não paga o piso remuneratório aos professores, bem reconheceremos a profunda necessidade de recursos que o horizonte da educação pública de qualidade reclama. Infelizmente, porém, até os presentes dias a União não regulamentou o custo aluno-qualidade inicial. A inconstitucional mora legislativa do governo federal impede que a sociedade tenha uma referência de custeio mais equitativa no federalismo educacional. Eis um impasse de custeio insuficiente para cuja resolução o Judiciário tem sido chamado a arbitrar[10].
Se é certo que falta dinheiro para trazer e manter quase 11 milhões de brasileiros na escola (das creches ao ensino médio), assim como para remunerar melhor nossos professores e para assegurar infra-estrutura adequada nas escolas, infelizmente é igualmente certo que gastamos muito e muito mal, por exemplo, com o FIES[11], com a compra de material apostilado pelas Prefeituras em duplicidade de gasto em face do Programa Nacional do Livro Didático[12], com inchaços de pessoal na folha da educação para encobrir diversas formas de compadrio e desvios, dentre outras mazelas…
Idêntica abordagem é cabível no âmbito do Sistema Único de Saúde, onde há carências incomensuráveis em face do subfinanciamento federal[13] no setor, fato que tem sido alvo de debate atualíssmo no Supremo Tribunal Federal no bojo da ADI 5.595, cujo julgamento pelo Pleno está pautado para o próximo dia 19 de outubro.
Ao lado do nosso ínfimo padrão de gasto público per capita em saúde, vemos, por exemplo, a deveras onerosa e questionável opção política de curto prazo da maioria dos prefeitos em querer manter uma maternidade para chamar de sua, mesmo em municípios ou regiões com menos de 30 mil habitantes. Ora, é imperativo pensarmos em promover a economicidade da gestão hospitalar no SUS por meio do federalismo cooperativo que concilie regionalização e ganho de escala. Há considerável nível de irracionalidade gerencial no fato de termos milhares de hospitais de pequeno porte[14], a pretexto de capilaridade territorial no atendimento secundário.
A bem da verdade, é chegada a hora de falarmos no fetiche hospitalocêntrico que é cada vez mais também referido ao acesso a medicamentos e procedimentos de alto custo. Tragicamente, nosso senso comum não reconhece a extrema relevância da atenção básica e da vigilância sanitária como eixos primordiais das ações e serviços públicos em saúde em nosso país. O ideário social acerca da trajetória evolutiva do SUS é capturado por tais demandas míopes e, com isso, não conseguimos pautar a primazia do acompanhamento preventivo e resolutivo no âmbito da atenção básica de saúde e, se efetivamente necessário, pelo atendimento em hospitais regionais que absorvam a real demanda pela média e alta complexidade.
Enfim, há muitas variáveis, interesses e conflitos distributivos em jogo, mas trouxe todos esses exemplos aqui para ampliarmos o alcance da nossa luta comum em prol da defesa da quase trintenária Constituição brasileira, bem como em busca da máxima eficácia dos direitos sociais ali albergados.
Antes de nos deixarmos segregar ou polarizar diante de maniqueísmos ou falsos dilemas, resgatemos a perspectiva muito singela e basilar de que nosso país precisa igualmente de melhor gestão e maior financiamento para a consecução dos direitos fundamentais, sobretudo para assegurar equitativamente saúde e educação públicas, diante da nossa realidade com imensas desigualdades regionais e sociais.
Nossa Constituição é pacto social que encerra o compromisso civilizatório de todos nós para com a dignidade da pessoa humana e para com os direitos sociais. Precisamos defendê-la de arroubos autoritários ou até mesmo de razões econômicas pretensamente fatalistas que lhe negam vigência real.
Em seu aniversário de 29 anos, é tempo, pois, de trazê-la para o campo simbólico das coisas apropriadas culturalmente, das coisas que ganham o nosso sentimento afetivo, porque enraizadas profundamente em nosso ser e viver coletivo.
Como egressa de escolas públicas e usuária do SUS que sou, declaro-me uma cidadã emancipada por força desse projeto constitucional de Estado comprometido com a redução das desigualdades. Pessoalmente manifesto satisfação por ver nas quase três décadas de Constituição Cidadã uma trajetória de resistência, resiliência aos inúmeros retrocessos que nela tentam embutir, opacamente, via ADCT. Há muita luta comum da sociedade e de cada cidadão na defesa e na implantação progressiva da nossa Constituição de 1988.
Celebro esperançosa esse seu 29º aniversário pela expectativa de que o STF vá afirmar no próximo dia 19 que o custeio dos direitos fundamentais não pode sofrer retrocessos, confirmando a belíssima cautelar concedida na ADI 5595.
Ao lado da esperança, segue também a consciência de que defender nosso pacto social hoje é conjugar e exigir democrática e simultaneamente a busca de uma melhor gestão pública com a progressividade no financiamento dos direitos fundamentais. Tudo isso somente se viabiliza em um contexto republicano de igual sujeição de todos à lei, de integridade na preservação do erário e de responsabilidade fiscal. Afinal, esses são os únicos meios de realização possível dos objetivos da nossa Constituição.
É sobretudo ela que nos une como sociedade que almeja ser civilizada em torno da dignidade plena de todos nós. É ela que nos dá a intensidade da cidadania que queremos viver e exercer coletivamente. Ela… que é a minha, a sua, a nossa Constituição Cidadã.
[1] Como já suscitamos em http://www.conjur.com.br/2017-mar-01/50-anos-decreto-lei-200-falencia-estado
[2] A esse respeito, vale a pena ler detidamente o relatório da Oxfam Brasil denominado “A distância que nos une: um retrato das desigualdades brasileiras” e disponível em https://www.oxfam.org.br/sites/default/files/arquivos/Relatorio_A_distancia_que_nos_une.pdf
[3] Interessante retomar a sugestão de redução expressiva no número de municípios e estados feita no estudo: ABRÃO, Carlos Henrique; LAURELLI, Laercio. É inadiável a reforma político-partidária, mas, antes dela, a da federação. Consultor Jurídico. 11 de julho de 2017. Disponível em http://www.conjur.com.br/2017-jul-11/opiniao-inadiavel-reforma-politico-partidaria-federacao.
[4] Disponível em http://www.tesouro.fazenda.gov.br/-/transferencias-correspondem-a-mais-de-75-da-receita-orcamentaria-em-82-dos-municipios-brasileiros e http://www.tesouro.fazenda.gov.br/documents/10180/318974/Boletim+BSPN+em+foco/4de73afb-ade7-4e3d-9bc3-c0a3a65f8d7e
[5] Como se pode ler em http://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2017-08/transferencias-representam-mais-de-tres-quartos-da-receita-de-82-dos e http://economia.estadao.com.br/noticias/geral,cidades-onde-so-ha-emprego-na-prefeitura,70002011375
[6] ARRETCHE, Marta. Mitos da Descentralização: Mais democracia e eficiência nas políticas públicas? Revista Brasileira de Ciências Sociais. 11 (31), 1996, p. 44-66, disponível em http://www.anpocs.org.br/portal/publicacoes/rbcs_00_31/rbcs31_03.htm
[7] Tal como noticiado em http://www.todospelaeducacao.org.br/reportagens-tpe/41690/brasil-ainda-tem-25-milhoes-de-criancas-e-jovens-fora-da-escola-a-maioria-entre-15-e-17-anos/
[8] Como se pode ler em http://www1.folha.uol.com.br/educacao/2017/03/1870746-quase-75-das-criancas-de-menos-de-quatro-anos-nao-vao-a-creche.shtml
[9] Eis o noticiado em https://g1.globo.com/educacao/noticia/maioria-dos-municipios-nao-paga-o-piso-salarial-aos-professores-diz-mec.ghtml e http://agenciabrasil.ebc.com.br/educacao/noticia/2016-03/mais-da-metade-dos-estados-nao-paga-o-piso-salarial-aos-professores-diz
[10] A esse respeito, vale acompanhar o noticiado em http://www.mpf.mp.br/rj/sala-de-imprensa/noticias-rj/mpf-rj-move-acao-para-fixar-padrao-de-qualidade-para-educacao e https://g1.globo.com/educacao/noticia/justica-determina-que-mec-defina-e-implemente-valor-de-gasto-por-aluno.ghtml
[11] Como se pode ler em http://portal.tcu.gov.br/imprensa/noticias/risco-de-insustentabilidade-do-fies-leva-tcu-a-ouvir-ex-ministros-da-educacao.htm e http://www1.folha.uol.com.br/educacao/2016/11/1834924-tcu-diz-que-fies-e-ineficaz-e-convoca-ex-ministros-por-irregularidades.shtml
[12] Algo pertinentemente noticiado em http://educacao.estadao.com.br/noticias/geral,182-cidades-de-sp-trocam-livro-federal-por-apostila-privada,10000016371
[13] Algo já reconhecido até pelo então Ministro da Saúde Arthur Chioro em audiência na Câmara dos Deputados, como se pode ler em http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/ADMINISTRACAO-PUBLICA/494671-MINISTRO-DA-SAUDE-DIZ-QUE-SUBFINANCIAMENTO-E-PRINCIPAL-PROBLEMA-DO-SUS.html
[14] https://exame.abril.com.br/revista-exame/para-o-ministro-da-saude-ha-excesso-de-hospitais-no-brasil/
Élida Graziane Pinto é procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo, pós-doutora em Administração pela Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getulio Vargas (FGV/RJ) e doutora em Direito Administrativo pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
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Advogado em São José do Rio Preto