Bernardo Cabral fala dos desafios de ter sido relator-geral da Constituição Federal de 1988 — OAB SP
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O advogado amazonense José Bernardo Cabral teve o desafio de ser (como senador constituinte) o relator-geral da Constituição de 1988. Motivo que o enche de orgulho por contribuir para a redemocratização brasileira, logo depois do fim do regime militar. “A maior conquista que a Carta Magna deu ao povo brasileiro foi termos saído do obscurantismo, de termos a liberdade e o acesso à informação e a volta ao Estado Democrático de Direito”, pontua, ao lembrar que teve seus direitos políticos cassados pelos militares quando exercia o mandato de deputado federal, em 1969. Para ele, que presidiu o Conselho Federal da Ordem na época que ocorreu o atentado à bomba ao Riocentro, em 1981, o Brasil vive o maior período democrático da sua história.
Como se deu o processo de construção da Constituição?
Em 1987, estávamos na Assembleia Nacional Constituinte tentando reedificar o vazio que foi decretado a partir de 1964. Na ditadura foi rompida inteiramente a obra normativa brasileira. Acabáramos de sair de uma excepcionalidade institucional para um ordenamento constitucional e tivemos de enfrentar críticas no meio do caminho. Por isso, é preciso fazer algumas considerações. Esses críticos ao texto se esquecem que vínhamos de um período em que as Forças Armadas, com o apoio de significativa parcela da classe política, destituiu o presidente da República. Com a saída de João Goulart (Jango) foram operadas lesões em nossa ordem jurídica e com elas vieram os Atos Institucionais 1, 2, 3, 4 e 5, o mais terrível, ocasião em que foram cassados vários parlamentares – inclusive fui um deles –; ou seja, é preciso lembrar o que havia acontecido quando essa Constituição começou a ser edificada. Foi uma construção completamente nova. Algumas assembleias constituintes – a do Império, a da República, a de 1934 e a de 1946 – operaram com esboço previamente elaborado. E o que é que aconteceu conosco? Os militares tinham ficado mais de 20 anos no poder. Havia ocorrido uma diáspora enorme… E coube à Assembleia Constituinte dar lugar ao reencontro. Todos – perseguidos, banidos da política, exilados – contribuíram para edificar essa nova Carta e para pôr fim aos pontos obscuros deixados pela ditadura.
Trinta anos depois, qual avaliação pode ser feita?
Este é, sem dúvida, o período mais democrático que o país já viveu. Quem ler, sem paixão nenhuma, o texto constitucional, verá que é um diploma exemplar. Especialistas dizem que foi a melhor de todas as constituições brasileiras e que ajudou, de fato, a consolidar a democracia. Prova disso está registrada na história antes e depois de 1988. Quando Costa e Silva teve aquele acidente vascular cerebral, seu vice-presidente, Pedro Aleixo, deveria ter assumido. Mas quem tomou o poder foi uma junta militar, composta pelos ministros da Guerra, da Marinha e da Aeronáutica. Agora, veja a diferença com a Constituição de 88: com sua promulgação evitamos grandes crises que poderiam ter ocorrido no país. O Fernando Collor foi impedido e quem assumiu o mandato foi o vice-presidente Itamar Franco, bem diferente do episódio com Pedro Aleixo. Logo depois, Fernando Henrique Cardoso cumpriu oito anos de poder, o mesmo ocorreu com Lula. A Dilma ficou no seu primeiro mandato e foi afastada por impeachment, mas, novamente, assumiu o vice-presidente. Por que que isso tudo aconteceu, sem interferências? Simples. Quando a Carta atual foi elaborada, chegou-se à conclusão de que não havia outro caminho, senão o democrático.
Quais pontos podemos destacar?
As emendas populares foram uma grande conquista, porque tinham mais de um milhão de assinaturas, demonstrando o engajamento de toda a nação. Foram aprovadas várias. Mas aí vem o grande ponto de interrogação: nessa construção da Constituição, ela não poderia ter sido melhor? Poderia. Porém, quem haveria de imaginar que dois anos depois cairia o muro de Berlim? Quem poderia pensar que a União da República Soviética, com todo seu domínio europeu, iria desfalecer? Havia no mundo dois regimes. E essa dicotomia tomou conta também da Constituição de 1988. Se soubéssemos que o regime comunista iria por água abaixo e o capitalista não conseguiria avançar, é claro que a Constituinte teria outro material para trabalhar. Hoje você enxerga melhor o cenário mundial e nacional.
O que poderia ter sido feito de diferente?
Cito um exemplo que me deixa entristecido. Saímos da Comissão de sistematização com o sistema parlamentarista de governo aprovado. Quando chegou para votação no Plenário, derrubaram. Uns dizem que foi benesse. Isso não interessa. O fato é que o presidencialismo ganhou. Os principais países do mundo, as grandes potências – à exceção dos Estados Unidos que têm um presidencialismo diferente – são parlamentaristas. Chamei o Humberto Lucena, que era o presidente do Senado, e que comandava o pessoal a favor do presidencialismo, e disse: “Vá correndo e diga a seu pessoal que retire o instituto da medida provisória do texto constitucional, porque medida provisória só pode conviver com sistema parlamentarista de governo. Se vocês não fizerem isso, vocês vão dar ao presidente da República o poder que nenhum ditador teve durante toda a história de existência do Brasil”. Não tiraram! E o que aconteceu? Temos problemas até hoje. Estamos com mil emendas tramitando no Congresso e, muitas delas, são apenas para atender interesses meramente circunstanciais.
E sobre a revisão constitucional?
Essa revisão que foi feita não deu em nada. Eles (parlamentares) não fizeram o dever de casa. E as medidas provisórias que deveriam ter aperfeiçoado a Constituição, transformaram a Carta em um canteiro de obras.
O que o senhor mudaria?
Eu não mudaria, eu melhoraria! Até a hora que nós a fizemos, eu examinei 52 mil emendas. Quando peguei o bolo que vinha das comissões temáticas, tinha mais de dois mil artigos e a Constituição ficou reduzida a 250, fora o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. É claro que ela é extensa e não deveria conter alguns artigos que lá estão.
O que a diferencia das anteriores?
A liberdade com que foi construída. Essa é a grande diferença de todas as demais. Essa Constituição não foi redigida num gabinete por um especialista na matéria constitucional. Portanto, é mais autêntica. Por isso que é chamada de Constituição Cidadã. As pessoas não se lembram de que o Ato Institucional nº 5 proibia qualquer medida judicial que tentasse atacar as medidas determinadas pelos atos institucionais. Ou seja, você não podia ir à Justiça se queixar por essa ou aquela razão. Hoje, temos o direito das garantias individuais, com um artigo que diz: “Nenhuma lesão de direito escapa da apreciação do Poder Judiciário”. Isso é a garantia de que se você tem o seu direito, tem de passar pelo Judiciário. Por isso que colocamos que é vedada qualquer censura na natureza política, ideológica e artística. Isso a diferencia de outras constituições, porque foi feita por quem passou por duros processos de perseguição. Se me perguntarem: o texto constitucional foi o ideal? Não foi, é claro! Uma das Constituições mais perfeitas do Brasil é a de 1937, feita por um grande jurista chamado Francisco Campos. Ela era tão perfeita que durou apenas oito anos. A nossa Carta atual é fruto exclusivamente das camadas populares que a integraram. Não foi fruto de um ditador. Toda a nação participou e contribuiu para melhorar os artigos que constam no texto.
Tem menos deveres e mais obrigações?
É uma crítica que não se pode contestar. O número de garantias é muito maior do que os deveres. Para que você faça essa observação tem de fazer a ressalva de que a Constituição foi escrita quando o país estava saindo de uma excepcionalidade institucional.
E quanto a uma nova Assembleia Constituinte…
Você faz uma Assembleia Nacional Constituinte quando se tem uma ruptura política. Por que houve a constituinte no Império? Porque o Brasil rompeu com Portugal. A Constituição da República se deu porque D. Pedro II foi banido. Já em 1930, Getúlio Vargas derrubou com a revolução o então presidente da República. Ele prometeu a Constituição e não fez, mas veio a Revolução de 1932, que o obrigou a fazer e aconteceu em 1934. E a de 1946? Ocorreu porque Getúlio foi apeado do poder. Já a do período militar se deu pela queda de João Goulart. Em todos esses casos ocorreram ruptura política constitucional. E a de 1988 se deu porque o Brasil acabara de sair do regime militar. Agora, nós temos os Tribunais superiores e o Congresso funcionando; e o Poder Executivo tem o presidente eleito pelo voto popular, ainda que tenha assumido o poder por conta do impeachment.
Foram muitas as pressões sofridas?
As principais foram feitas por meio de lobbys, mas eram normais. Por exemplo, o Poder Judiciário fez o lobby para a criação do Superior Tribunal de Justiça, que àquela altura era Tribunal Federal de Recursos. Às vezes ouço dizer que alguém das Forças Armadas fez pressão. A mim, como relator, ninguém ousou fazer qualquer pressão e muito menos ao Ulysses Guimarães. Chegou a circular a informação que havia um movimento para fechar o Congresso e o Ulysses foi à tribuna dar uma resposta: “Viemos aqui para escrever uma Constituição, não para ter medo”. Depois rebateu críticas de alguns assessores do então presidente José Sarney. Eles diziam que a CF de 88 não duraria seis meses e que o país ficaria ingovernável. Hoje, ela faz 30 anos. Essas profecias horrorosas não ficaram de pé. Mesmo com uma crise ética e de falência moral, que vivemos hoje, a Constituição não tropeçou. Está de pé.
Como seria o Brasil sem a Constituição de 1988?
Se não tivéssemos essa Constituição, provavelmente estaríamos numa ditadura. O Brasil é um país que tem jeito. Temos uma fortuna incalculável em nosso solo, nossas riquezas minerais… Isso ficou claro em nossa Constituição. Às vezes, fico pensando que as pessoas estão fazendo domeio ambiente uma coisa da moda. Em 1987, já pedíamos melhoras para o meio ambiente. Tanto que incluímos um capítulo específico. Foi um trabalho de todos os constituintes. Outra questão é sobre os índios. Algumas pessoas contrárias dizem que fomos “tolos” por termos colocado os índios na Constituição. Sempre respondo: “Os países que não colocaram os índios na sua Constituição foram aqueles que os dizimaram”.
O brasileiro cobra uma reforma política. A Constituição falhou nesse aspecto?
Ela não se saiu como deveria. Não tínhamos como prever o que aconteceria 20… 30 anos depois. Lamentavelmente, essa parte eleitoral precisa ser reformulada.
O STF afronta a Constituição ao permitir a prisão em 2º grau?
Não diria que se trata de uma afronta, até porque o Supremo já fez várias afrontas ao texto constitucional. Mas foi a partir desse contexto que se ampliaram as discussões sobre o STF estar legislando. O Poder Legislativo é quem constrói as leis, o Executivo é quem executa e o Judiciário é quem interpreta sua legalidade. O Supremo precisa dar um basta nessa caminhada de legislar, cabe a ele ser o guardião da democracia. A Constituição foi muito expressa nesse sentido, deixando claro que a Corte é o tripé da democracia e você não pode prescindir dela, nunca.
Advogado, o senhor foi deputado, relator constituinte, senador, ministro da Justiça… Qual função foi a mais difícil?
A de relator pode ter sido difícil por sua complexidade e me deu muito orgulho. Mas a advocacia me proporcionou momentos díspares: tanto de sofrimento quanto de altivez. Ter presidido a Ordem também me dá orgulho. E fui presidente (1981-1983), quando explodiu a bomba doRiocentro. Naquele período sei quantas ameaças de morte sofri… Quando a repressão, a ditadura, é muito aguda, quem mais se sobressai é a OAB. É pioneira, é quem sai na frente para garantir os direitos dos cidadãos. É lógico que quando fui relator sofria ameaças. Fiz, inclusive, um manuscrito a Ulysses Guimarães, onde abordava os insultos, as ofensas e as injúrias sofridas, mas não desertei, não me omiti. Quis dar minha contribuição e consegui.
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Advogado em São José do Rio Preto