Vinculação de impostos a gastos sociais é uma cláusula pétrea
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Um dos maiores dilemas para a compreensão da realidade é que, para fins didáticos, se fatia os fenômenos visando sua melhor análise, dividindo o conhecimento em áreas separadas, porém isso pode ocasionar excesso de compartimentação. É necessário ter a visão da floresta, do todo, e não apenas de uma específica árvore, pois isso não resolve os problemas que todos os dias se apresentam para obter uma solução.
Nunca ocorreu de você ir a um médico que te receitou um remédio para curar um mal-estar, o qual ocasionou outro? É necessário especializar o conhecimento, afinal, você não procura um cardiologista para cuidar de bicho-de-pé, porém é imprescindível que o médico saiba estar defronte de um ser humano completo, que tem pé, mas também tem coração, miolos etc. Especializar é bom, compartimentar em excesso é péssimo, pois isso isola o conhecimento. Já ocorreu de você fazer uma pergunta simples, básica, a um especialista e ele responder, sem pensar duas vezes: “Isso eu não sei, é de outra área”?
Esse problema está presente em toda a teoria do conhecimento e, claro, o Direito não está fora desse contexto. Os fatos afetam transversalmente várias áreas da análise jurídica, sendo estudados de forma fracionada apenas por razões didáticas, porém transpassam diversos saberes.
Um bom exemplo acerca desse debate pode ser visto nesta coluna, a partir de seu título. Quantas áreas do Direito (e vou só tratar de Direito) estão envolvidas? Caso o leitor queira fazer uma aposta, peço que pense, reflita, e ao final confira a resposta.
Vincular decorre da existência de um liame jurídico entre receita e despesa, de forma que haja uma específica relação entre o que se arrecada e aquilo em que se gasta o montante arrecadado. Mecanismo jurídico semelhante, porém não idêntico, é o da referibilidade, presente nas contribuições, pois estas têm sua arrecadação voltada para determinadas finalidades, sendo isso que caracteriza a espécie tributária das contribuições, de outra espécie, a dos impostos.
Observa-se que uma diferença entre ambos está no liame jurídico, que nas vinculações decorre de direito positivo, sendo meramente doutrinário na referibilidade.
Veja-se o caso da CIDE-combustíveis. Apenas por ser uma contribuição possui referibilidade, porém o ordenamento positivo, no caso constitucional, lhe atribuiu uma vinculação para financiamento de programas de infraestrutura de transportes e para financiamento de projetos ambientais na área de petróleo e gás, entre outros (art. 177, §4, II, CF).
O art. 167, IV da Constituição[1] consagra o assim chamado Princípio da Não-Afetação, proibindo a vinculação da receita de impostos a órgão, fundo ou despesa. Tal preceito revela-se uma cláusula aberta, consagradora da liberdade do legislador para dispor livremente de todas as receitas que tiverem sido auferidas. É interessante observar que no âmbito da Constituição de 1967/69 tal preceito se referia a tributos (art. 62, §2º), e não apenas a impostos, como na Constituição de 1988.
A despeito de consagrar a não-afetação de impostos, o inciso atual estabelece algumas exceções que envolvem uma série de diferentes assuntos e institutos jurídicos, como se verá.
É ressalvada da não-afetação “a repartição do produto da arrecadação dos impostos a que se referem os arts. 158 e 159”. Tais artigos dizem respeito ao federalismo fiscal, e determinam transferências obrigatórias entre os entes federados.
É também afastada do comando central da norma “a destinação de recursos (…) para realização de atividades da administração tributária, como determinado, respectivamente, pelos arts. 198, §2º, 212 e 37, XXII”. A rigor, não se trata de uma vinculação, mas da indicação de uma prioridade, pois não há nenhum liame normativo unindo uma fonte de receita a essa despesa.
Outra afetação pode ocorrer para “a prestação de garantias às operações de crédito por antecipação de receita, previstas no art. 165, §8º, bem como o disposto no §4º deste artigo”. Aqui não há um vinculo pré-existente, mas uma autorização para que venha a ser estabelecida por lei uma vinculação unindo uma fonte de receita à prestação de uma garantia financeira decorrente de operações de crédito.
Apenas uma das exceções prevista no art. 166, IV, CF, diz respeito a dois dos direitos sociais: “a destinação de recursos para as ações e serviços públicos de saúde, para manutenção e desenvolvimento do ensino”. O liame jurídico que une a fonte de arrecadação para a realização desses gastos está constitucionalizado no art. 198, §2º, para a saúde, e no art. 212 para a educação.
Pois bem, porque se afirma que esta exceção à norma de não-afetação, veicula uma clausula pétrea constitucional?
Como é sabido, as cláusulas pétreas não permitem que alguns temas sejam sequer objeto de proposta de emenda tendente à sua modificação (art. 60, §4º, CF), sendo os “direitos e garantias individuais” contemplados no inciso IV.
Eis a questão: Estará o financiamento desses dois direitos sociais, de educação e de saúde, contidos dentre os “direitos e garantias individuais”?
Respondo que sim, através da construção jurídica que passo sucintamente a expor.
O Título II da Constituição, denominado de “Direitos e Garantias Fundamentais”, possui cinco Capítulos. O primeiro desses Capítulos diz respeito aos “Direitos e Deveres Individuais e Coletivos”, contendo o art. 5º, e o segundo trata “Dos Direitos Sociais”, que se inicia com o art. 6º, no qual estão consagrados os direitos sociais à saúde e à educação. O STF já decidiu que esses dois direitos sociais são direitos fundamentais (ver, por todos, para a saúde a ADI 3.510, Min. Ayres Brito; e para a educação a ADC 41, Min. Roberto Barroso e ADI 5.357, Min. Edson Fachin). Portanto, fica assente que os direito à educação e à saúde são direitos sociais e também fundamentais.
Essa análise é suficiente, mas se pode avançar, problematizando, pois a norma pétrea menciona “direitos e garantias individuais”. Serão os direitos sociais, já identificados como direitos fundamentais, também “direitos individuais”?
Seguramente há uma dimensão individual nos direitos sociais. Ela não se esgota na individualidade, pois o todo é maior que a soma das partes, como ensinou Aristóteles, há mais de 2.500 anos. Logo, existe uma dimensão individual dentre os direitos sociais, o que alcança a amplitude pretendida pelas cláusulas pétreas.
Analisando a jurisprudência do STF, vê-se interessante análise realizada pelo Min. Gilmar Mendes, na ADPF 33-MC, ao tratar do alcance das cláusulas pétreas, na qual assevera que “a lesão a preceito fundamental não se configurará apenas quando se verificar possível afronta a um princípio fundamental, tal como assente na ordem constitucional, mas também a disposições que confiram densidade normativa ou significado específico a esse princípio”. Assim, pode-se ampliar tal conceito restritivo de “direito individual” previsto na cláusula pétrea, a fim de alcançar toda a densidade normativa, de que trata o Min. Gilmar, para estes dois direitos sociais, já declarados como fundamentais. Bem sei que ele o fez analisando o que seria um preceito fundamental, instituto diverso, mas que é correlato ao que ora se discute neste texto.
Porém, o que se assegura é o direito ou o financiamento a esse direito? Não se há de esquecer que se está tratando de vinculação, ou seja, um liame normativo que une uma fonte de recursos para custeio de determinado gasto social.
Por se tratar de direitos prestacionais, sobreonerosos, além dos demais que também custam – nem é necessário invocar a doutrina de Cass e Sustein para isso –, cortar a fonte de custeio significa solapar o direito. E a Constituição estabeleceu em seu texto uma fonte de custeio específica para isso – o que é diverso de haver uma fonte infraconstitucional. Logo, a fonte de custeio – leia-se, a vinculação – também está acobertada pela proteção pétrea constitucional, segundo meu ponto de vista, conforme tentei esboçar nas linhas acima.
A consequência de tal raciocínio é que a vinculação de recursos deve ser protegida constitucional e petrificadamente, até mesmo contra eventuais avanços do constituinte derivado — o que já ocorreu, mas ainda sem pronunciamento do STF.
Chegando ao final deste breve texto, o heroico leitor que até aqui me acompanhou, conseguiu identificar quantas áreas do Direito foram abordadas? Tá valendo a aposta acima apresentada?
Resposta: inúmeras. Parte-se de um tema típico de Direito Tributário (tributos, impostos, contribuições); passa-se pelo Direito Financeiro (vinculações, não-afetação, referibilidade); transita-se pelo Direito Constitucional com foco na jurisprudência do STF; trata-se de Direitos Sociais e Direitos Fundamentais, que são temas de Teoria do Direito, com diversas ramificações (Direito do Trabalho, Direito Educacional, Direito Sanitário, dentre vários outros); sem contar uma pitada de filosofia aristotélica, dentre vários outros temas incidentais ao foco central do debate. Isso apenas busca demonstrar que, quotidianamente, embrulhamos o conhecimento de diversas áreas, a despeito de nos dizermos, e com razão, especialistas em Direito X ou Y. Os problemas são mais complexos do que uma restritiva análise didática pode deixar transparecer, e é necessário apontar o problema do excesso de compartimentação, que gera consequências nefastas. É a interdisciplinaridade endógena (também conhecida por transdisciplinaridade endógena) que permite resolver os problemas que ocorrem todos os dias.
Aproveito para desejar a todos um feliz dia dos professores, transcorrido neste último domingo (15/10). Chegar a este ponto do texto comprova que tanto você, como eu, tivemos professores que nos permitiram isso, sucessivamente, desde o curso primário. Tal como faço, lembre-se de seus professores com carinho, sempre.
[1] “Art. 167. São vedados: IV – a vinculação de receita de impostos a órgão, fundo ou despesa, ressalvadas a repartição do produto da arrecadação dos impostos a que se referem os arts. 158 e 159, a destinação de recursos para as ações e serviços públicos de saúde, para manutenção e desenvolvimento do ensino e para realização de atividades da administração tributária, como determinado, respectivamente, pelos arts. 198, § 2º, 212 e 37, XXII, e a prestação de garantias às operações de crédito por antecipação de receita, previstas no art. 165, § 8º, bem como o disposto no § 4º deste artigo”.
Fernando Facury Scaff é advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Melo, Guimarães, Pinheiro & Scaff – Advogados; professor da USP e livre docente em Direito pela mesma universidade.
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Advogado em São José do Rio Preto