Uma perspectiva constitucional do conceito de meio ambiente
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A Constituição de 1988 não estabeleceu o conteúdo do conceito de meio ambiente, determinando apenas a sua proteção, ficando essa tarefa a cargo da doutrina, da jurisprudência e da legislação infraconstitucional. O preenchimento desse conteúdo é essencial porque implica na delimitação do próprio objeto das normas constitucionais que versam sobre a matéria, bem como do Direito Ambiental brasileiro de uma forma geral. A procura pela determinação desse conceito deve obedecer aos ditames constitucionais, que consagram a defesa desse bem como valor fundamental. Afinal de contas, é óbvio que a opção do legislador constituinte originário por uma conceituação em aberto não foi aleatória, pois objetivava fazer com que a atualização de tal conteúdo ocorresse sem que a Carta Magna tivesse de sofrer emendas, seguindo o natural processo de mutação constitucional[1].
As Constituições simplesmente refletem a compreensão da sociedade a respeito de um determinado assunto e dentro de certo contexto histórico, posto que são produtos culturais de um povo. Tais Cartas devem, necessariamente, guardar sintonia com a realidade, vinculando-se aos conflitos e valores sociais do seu tempo, sob pena de perder a eficácia e, em última análise, a própria razão de existir[2]. Caminha nessa direção a hermenêutica de integração da realidade ao processo de interpretação constitucional defendida por Peter Häberle[3], segundo o qual a aplicação dessas normas é uma construção coletiva e, por consequência, dinâmica.
Logo, por estar sujeito à mutação interpretativa, a conceituação de meio ambiente deve ser preenchida da forma que mais se adapte às exigências sociais e que melhor concretize o desiderato constitucional de efetividade e de imprescindibilidade. Nesse diapasão, o conceito jurídico indeterminado é mais adequado à complexidade das mudanças que ocorrem na área, mormente quando se fala em crise ambiental, que é a generalização da escassez dos recursos ambientais e das diversas catástrofes planetárias surgidas a partir das ações do ser humano sobre a natureza[4]. De fato, parece mesmo que a continuidade da raça humana e até do planeta está em xeque, tamanhos são os problemas ambientais da atualidade, a exemplo do aquecimento global, do buraco na camada de ozônio, da escassez de água potável, da perda da diversidade biológica e da falta de tratamento dos resíduos.
Contudo, antes da promulgação dessa Carta, a Lei 6.938/81, que dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente e cria o Sistema Nacional do Meio Ambiente, já definia o meio ambiente como “o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas”. Essa conceituação foi muito inovadora para a sua época, por estender a proteção jurídica a todos os elementos da natureza de uma forma interativa e global:
Somente a partir de 1981, com a promulgação da Lei nº 6.938/81 (Lei da Política Nacional do Meio Ambiente), ensaiou-se o primeiro passo em direção a um paradigma jurídico-econômico que holisticamente tratasse e não maltratasse a terra, seus arvoredos e os processos ecológicos essenciais a ela associados. Um caminhar incerto e talvez insincero a princípio, em pleno regime militar, que ganhou velocidade com a democratização em 1985 e recebeu extraordinária aceitação na Constituição de 1988[5].
Ocorre que a Lei Fundamental de 1988 atribuiu ao meio ambiente uma configuração jurídica diferenciada, ao classificá-lo como direito de todos e bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, atribuindo a esse bem um dimensionamento muito mais significativo. Enquanto a mencionada definição legal se atinha a um ponto de vista biológico, físico ou químico, a nova ordem constitucional trouxe o ser humano para o centro da questão ambiental, ao apontá-lo simultaneamente como destinatário e implementador dessas determinações[6]. Prova disso é que o capítulo que trata do assunto na Constituição de 1988 está inserido no Título VIII, que dispõe sobre a ordem social. Por se tratar de um direito fundamental da pessoa humana, é evidente que o desiderato constitucional é que essa proteção seja a mais ampla e efetiva possível, devendo a conceituação desse bem ser também a mais ampla.
Nessa ordem de ideias, desponta o importante papel da doutrina na construção de um conceito jurídico de meio ambiente mais condizente com a problemática atual. Na compreensão de José Afonso da Silva, trata-se da “interação do conjunto de elementos naturais, artificiais, e culturais que propiciem o desenvolvimento equilibrado da vida em todas as suas formas”[7]. Com isso, a questão social também foi abarcada, de maneira que o paradigma holístico da defesa do meio ambiente contido na citada lei foi recepcionado e ampliado:
Conforme se pode apreender do texto constitucional, o objeto de tutela do ambiente aponta para quatro direções ou dimensões distintas, mas necessariamente integradas. Assim, pode-se distribuir o bem jurídico ambiental em: a) ambiente natural ou físico, que contempla os recursos naturais de um modo geral, abrangendo a terra, a água, o ar atmosférico, a flora, a fauna e o patrimônio genético; b) ambiente cultural, que alberga o patrimônio histórico, artístico, paisagístico, arqueológico e turístico; c) ambiente artificial ou criado, que compreende o espaço urbano construído, quer através de edificações, quer por intermédio de equipamentos públicos; e também d) ambiente do trabalho, que integra o ambiente onde as relações de trabalho são desempenhadas, tendo em conta o primado da vida e da dignidade do trabalhador em razão de situações de insalubridade e periculosidade (arts. 7º, XXII, XXIII e XXXIII; e 200, II e VIII, do texto constitucional de 1988)[8].
O meio ambiente natural, ou físico, é constituído pelos recursos naturais, que são invariavelmente encontrados em todo o planeta, ainda que em composição e em concentração diferente, e que podem ser considerados individualmente ou pela correlação recíproca de cada um desses elementos com os demais. Os recursos naturais são normalmente divididos em elementos abióticos, que são aqueles sem vida, como o solo, o subsolo, os recursos hídricos e o ar, e em elementos bióticos, que são aqueles que têm vida, a exemplo da fauna e da flora. Esse é o aspecto imediatamente ressaltado pelo citado inciso I do artigo 3º da Lei 6.938/81.
O meio ambiente artificial é o construído ou alterado pelo ser humano, sendo constituído pelos edifícios urbanos, que são os espaços públicos fechados, e pelos equipamentos comunitários, que são os espaços públicos abertos, como as ruas, as praças e as áreas verdes. Esse aspecto do meio ambiente abrange também a zona rural, referindo-se simplesmente aos espaços habitáveis, visto que nela os espaços naturais também cedem lugar ou se integram às edificações artificiais[9]. Entretanto, o enfoque do direito ao meio ambiente artificial é, realmente, as cidades, que é o espaço onde atualmente habita a maior parte da população brasileira e mundial, cabendo por isso ao poder público promover o acesso ao lazer, à infraestrutura urbana, à moradia, ao saneamento básico, aos serviços públicos e ao transporte. É nesse contexto que a Carta Magna estabelece o direito às cidades sustentáveis, o que deve ser feito por meio de uma política urbana apropriada e participativa, nos moldes do que determinam os artigos 182 e 183, o Estatuto da Cidade (Lei 10.257/01) e Estatuto da Metrópole (Lei 13.089/2015).
O meio ambiente cultural é o patrimônio histórico, artístico, paisagístico, ecológico, científico e turístico e se constitui tanto de bens de natureza material, a exemplo de construções, lugares, obras de arte, objetos e documentos de importância para a cultura, quanto imaterial, a exemplo de idiomas, danças, mitos, cultos religiosos e costumes de uma maneira geral. A razão dessa especial proteção é que o ser humano, ao interagir com o meio onde vive, independentemente de se tratar de uma região antropizada ou não, atribui um valor especial a determinados locais ou bens, que passam a servir de referência à identidade de um povo ou até de toda a humanidade. A matéria é tratada pelos artigos 215 e 216 da Constituição de 1988.
O meio ambiente do trabalho, considerado também uma extensão do conceito de meio ambiente artificial, é o conjunto de fatores que se relacionam às condições do ambiente laboral, como o local de trabalho, as ferramentas, as máquinas, os agentes químicos, biológicos e físicos, as operações, os processos e a relação entre o trabalhador e o meio físico e psicológico. A Carta Magna reconheceu nos incisos XXII e XXIII do artigo 7º que as condições de trabalho têm uma relação direta com a saúde e, portanto, com a qualidade de vida do trabalhador, inclusive porque é no labor que a maioria dos seres humanos passa grande parte da existência. O objetivo do legislador constituinte originário ao cunhar a terminologia “meio ambiente do trabalho” no inciso VIII do artigo 200 é enfatizar que a proteção ambiental trabalhista não deve se restringir às relações de caráter empregatício, pois a incolumidade e a salubridade do trabalhador também guardam relação com a questão ecológica, visto que grande parte das empresas que causam danos ambientais são normalmente aquelas que não zelam por esse aspecto do meio ambiente.
Uma parte da doutrina tem incluído como novo elemento nessa classificação o patrimônio genético, o qual deve compreender as informações de origem genética oriundas dos seres vivos de todas as espécies, seja animal, vegetal, microbiano ou fúngico. Existe uma relação direta entre o patrimônio genético e a biodiversidade ou diversidade biológica, já que esta é o conjunto de vida existente no planeta ou em determinada parte do planeta e aquele uma gama de informações estratégicas relativas a tais seres.
Como a integridade genética é um valor plasmado no inciso II do parágrafo 1º do artigo 225 da Constituição de 1988, impõe-se a maior cautela possível em relação à biotecnologia, que é o ramo da engenharia genética que se dedica à modificação genética dos organismos. Esse dispositivo foi regulamentado pela Lei 11.105/05, que estabelece normas de segurança e mecanismos de fiscalização sobre a construção, o cultivo, a produção, a manipulação, o transporte, a transferência, a importação, a exportação, o armazenamento, a pesquisa, a comercialização, o consumo, a liberação no meio ambiente e o descarte de organismos geneticamente modificados e seus derivados. Cumpre destacar que por estar relacionado aos recursos naturais, o patrimônio genético não deixa de ser uma subespécie ou um desdobramento do conceito de meio ambiente natural.
É importante destacar que essa classificação atende a uma necessidade metodológica ao facilitar a identificação da atividade agressora e do bem diretamente degradado, visto que o meio ambiente por definição é unitário[10]. Com efeito, independentemente dos seus aspectos e classificações, é evidente que a proteção jurídica ao meio ambiente é uma só e tem sempre o único objetivo de defender a qualidade e a continuidade da vida. A visão individualizada dos recursos naturais foi superada pela perspectiva relacional ou sistêmica, ganhando relevo a função ecológica que cada elemento da natureza desempenha em relação aos demais:
Como bem — enxergado como verdadeira universitas corporalis é imaterial — não se confundindo com esta ou aquela coisa material (floresta, rio, mar, sítio histórico, espécie protegida etc.) que a forma, manifestando-se, ao revés, como o complexo de bens agregados que compõem a realidade ambiental.
Assim, o meio ambiente é bem, mas como entidade, onde se destacam vários bens materiais em que se firma, ganhando proeminência na sua identificação, muito mais o valor relativo à composição, característica ou utilidade da coisa do que a própria coisa.
Uma definição como essa de meio ambiente, como macrobem, não é incompatível com a constatação de que o complexo ambiental é composto de entidades singulares (as coisas, por exemplo) que, em si mesmas, também são bens jurídicos: é o rio, a casa de valor histórico, o bosque com apelo paisagístico, o ar respirável, a água potável[11].
O meio ambiente pode ser classificado como microbem e como macrobem. Na condição de microbem, o meio ambiente é reduzido a um de seus elementos individuais, o que leva a enfatizar normalmente apenas o seu aspecto econômico ou estético, ao passo que na condição de macrobem qualquer componente do meio ambiente merece ser protegido apenas por fazer parte de um sistema em que todas as partes estão interconectadas.
No macrobem é o aspecto imaterial que se destaca, fazendo com que o meio ambiente seja protegido por seu valor intrínseco. A Constituição de 1988 estabeleceu o tratamento jurídico das partes a partir do todo e não o contrário, como acontecia com os ordenamentos constitucionais anteriores[12]. Isso implica dizer que a concepção holística foi inteiramente recepcionada, passando o meio ambiente a ser tratado como um bem autônomo e indivisível, que compreende, embora não se confunda com os recursos naturais. Não é por outra razão a proteção aos processos ecológicos essenciais e ao manejo ecológico das espécies e ecossistemas prevista no inciso 1º, do parágrafo 1º, do artigo 225.
[1] CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003, p. 1228.
[2] HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1991, p. 13.
[3] HÄBERLE, Peter. Hermenêutica constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: contribuição para a interpretação pluralista e procedimental da Constituição. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1997, p. 12/13.
[4] LEITE, José Rubens Morato. Dano ambiental: do individual ao coletivo extrapatrimonial. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 21.
[5] BENJAMIN, Antônio Herman. Constitucionalização do ambiente e ecologização da Constituição brasileira. In: CANOTILHO, José Joaquim Gomes; LEITE, José Rubens Morato (coords). Direito Constitucional Ambiental brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 57/58.
[6] ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito Ambiental. 11. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 65.
[7] SILVA, José Afonso da. Direito Ambiental Constitucional. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 19.
[8] FENSTERSEIFER, Tiago. Direitos fundamentais e proteção do ambiente: a dimensão ecológica da dignidade humana no marco jurídico-constitucional do Estado Socioambiental de Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, p. 164.
[9] FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Curso de Direito Ambiental brasileiro. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 21.
[10] FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Curso de Direito Ambiental brasileiro. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 20.
[11] BENJAMIN, Antônio Herman. Função Ambiental. In: BENJAMIN, Antônio Herman (coord). Dano ambiental: prevenção, reparação e repressão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993, p. 75.
[12] BENJAMIN, Antônio Herman. Constitucionalização do ambiente e ecologização da Constituição brasileira. In: CANOTILHO, José Joaquim Gomes; LEITE, José Rubens Morato (coords). Direito Constitucional Ambiental brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 66.
Talden Farias é advogado e professor da UFPB, mestre em Ciências Jurídicas (UFPB), doutor em Recursos Naturais (UFCG) e em Direito da Cidade (Uerj). Autor de publicações nas áreas de Direito Ambiental e Minerário.
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Advogado em São José do Rio Preto