Rafael Faria: Delação premiada exige interdisciplinaridade
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O início da filosofia da Colaboração (ou Delação) Premiada remonta a Idade Média, porém, foi na Itália dos anos 70, que o instituto passou a ganhar contornos jurídicos delineados, e ganhou projeção, posteriormente, no combate à máfia italiana, através da Operazione Mani Pulite.
No Brasil, em que pese a já existência de alguns benefícios previstos em leis esparsas aos colaboradores, a Delação Premiada foi instituída de forma contumaz a partir da Lei 12.850/2013. Contudo, a lacunosa lei foi incapaz de traduzir não só a instrumentalização da Delação Premiada, como também omissa no tocante aos efeitos, sob o ponto de vista positivo e negativo dos colaboradores, deixando a cargo do interprete as suas imperfeições.
Na grande parte da doutrina, a Delação Premiada é tratada em sua natureza como dogma difícil de se enfrentar, ou seja, como se não bastasse a lacuna legislativa, encontra-se dificuldade na obtenção de bons livros jurídicos sobre o assunto.
Quando instado a falar (pela primeira vez) sobre a Lei em comento, o Supremo Tribunal Federal, no HC 127.483/PR, relatoria do ministro Dias Toffoli, informativo 796, aduziu que a delação premiada deveria ser tratada como veículo de produção probatória; mas há quem sustente como meio de prova, ou meio de investigação de prova, ou até mesmo negócio jurídico processual.
A interdisciplinaridade do Direito, pela lupa da interpretação dos novos sistemas, consolida-se naturalmente pela teoria do diálogo das fontes (Theorie der Quellen Dialog), apresentada pelo Jurista alemão Eric Jayme, o que faz com que a Delação Premiada seja subsumida, inclusive, sob a ótica do direito contratual.
É de bom alvitre ponderar que as matizes do direito civil, de origem romano-germânica, com fundamento no Civil Law, foram e formam a base do nosso ordenamento jurídico pátrio, repercutindo em vários institutos jurídicos dos mais diversos ramos do direito, a exemplo do direito administrativo, do direito processual, entre outros.
Por sua vez, os contratos celebrados, em âmbito da administração pública, em que pesem algumas regras específicas, também sofrem influência das regras e princípios da teoria geral dos contratos, o que é o caso dos contratos de Delação Premiada, travados entre o delator e o Ministério Público.
Estes nada mais são do que acordos realizados na seara interna do órgão acusador com o delator, e que repercutem na seara penal, e, reflexamente, em outras, a exemplo da econômica, diante da celebração de acordos de leniência, já que trava grande correlação.
Com olhar atento aos apontamentos acima, causa estranheza a interpretação restritiva e autoritária com que os órgãos de investigação vêm tratando o instituto da Colaboração Premiada, em especial:
a) a uma, por se valer da singela alegação de que qualquer descoberta não revelada seria má-fé do delator, tornando um fato singular no mundo da probabilidade, como uma verdade absoluta, presunção juris et de juri (absoluta), sem a mera instauração de um processo administrativo, que permita o contraditório e a ampla defesa;
b) a duas, por desprezar a “qualidade” da prova disponibilizada, e dos fatos revelados pelo delator, que até então a investigação os desconhecia, tudo sem mensurar o custo benefício para a desvelar dos fatos da investigação.
O açodamento ministerial, já denunciado em outro artigo da minha autoria (crise moral não justifica fim da presunção de inocência), faz com que o Ministério Público se valha, inclusive, do delator como trampolim para as suas “mais variadas intenções” (como, infelizmente, temos assistido), vez que a discricionariedade nos acordos é intensa, e deveras subjetiva.
Apenas por amor ao debate, relembro que é remansosa a jurisprudência pátria pela possibilidade de convalidação até mesmo dos atos e contratos administrativos eivados de aparente nulidade, quando cotejados diante do princípio da proporcionalidade, sopesando os bens jurídicos em conflito.
Destarte, pergunta que não quer calar aos operadores do direito: seria moralmente ético e juridicamente proporcional o Estado rescindir um acordo de Colaboração Premiada, em que o delator contribuiu de forma demasiada, com vários elementos de prova, tudo pelo só fato do delator suprimir alguns acontecimentos? E os quais não prejudicam a qualidade das provas apresentada, tanto que os órgãos de persecução penal querem utilizá-las?
A partir do momento em que o delator oferece ao Ministério Público conteúdo probatório, ainda que informal, possui sim “direito subjetivo” de obter o seu benefício contratualmente previsto, principalmente, quando o próprio órgão acusador demonstra desconhecimento anterior da prova, e passa a utilizá-la nas suas atividades de investigação.
Analogicamente, valendo-se das mesmas premissas, num contrato onde a parte se compromete a pagar um bem em tantas vezes, e, no decorrer do caminho, torna-se inadimplente, o comprador além de não ter o bem objeto do contrato, poderia ficar com todo o quantum pago? Evidente que não! No direito civil isso é tratado como enriquecimento sem causa, e assim também deve o ser quanto ao instituto da Colaboração Premiada, ainda que sejam aplicadas sanções posteriores.
Ora, se haverá o aproveitamento das provas, soa desarrazoado e de má-fé a rescisão plena do contrato de colaboração, outrora ratificado entre os pactuantes, uma vez que a tratativa surtiu ou surtirá efeitos no mundo dos fatos jurígenos. Sabe-se que, mesmo nas situações em que a boa-fé não esteja em xeque, é sim a “qualidade” da prova oferecida pelo delator que favorece a celebração do acordo, elemento essencial para a tratativa.
Não seria leonino oferecer uma Denúncia (com base nos fatos trazidos por um delator), e logo após dizer que aquilo não foi o bastante?
Que nenhuma omissão seja suprimida pelo delator, para que este não tenha o acordo rescindido unilateralmente, mesmo que o fato não influencie na qualidade da prova apresentada, é conferir uma interpretação leonina e inconstitucional ao dispositivo da Lei nº 12.850/2013, que trata o tema rescisão da Colaboração Premiada de forma precária e superficial. Compete, pois, ao operador do Direito, integrar a norma a luz da disciplinaridade do ordenamento jurídico, conferindo exegese sistemática e harmônica às cláusulas e procedimentos do contrato pactuado.
Jaez, defeso, sim, é o Estado-acusador querer o melhor dos dois mundos, anular o acordo em sua plenitude, em prejuízo para o delator (revelador), mas, posteriormente, utilizar-se de toda a parte contratual da avença prestada pelo delator; qual seja, os elementos de prova para a investigação, que até então desconhecia.
Neste prisma, até o momento, verifica-se um Poder Judiciário inerte, pois nada impede que o magistrado, utilizando-se de seu controle de legalidade, declare a inconstitucionalidade de cláusulas leoninas, que causam lesão a direitos subjetivos, cláusulas estas que, por vezes, extrapolam a competência do órgão acusador, ou mesmo que colocam o delator numa posição de desvantagem e submissão.
Como admirador da literatura, trago a mente a obra de Miguel de Cervantes, Dom Quixote, Capítulo XXXIX: ”ainda que agrade a traição, ao traidor tem-se aversão”.
Pois, ao poder judiciário, com olhar atento ao princípio do non liquet (dever-poder de suprimir lacunas), revelar o vazio normativo da Lei nº 12.850/2013, restabelecendo a abalada credibilidade do intuito contratual da Colaboração Premiada, para que o mesmo seja justo, ético, proporcional, balizado pelo devido processo administrativo; e que, de fato, possa trazer benefícios a todos os envolvidos na celebração do acordo, valendo-se, inclusive, para tanto do aparato do Common Law.
Figura do Estado Absolutista, tão bem retratado pelo inglês Thomas Hobbes, na sua obra Leviatã, não pode resurgir nos dias atuais, sob o manto de práticas inquisitórias, arbitrárias e supressivas de direitos. O Estado Democrático exige novas posturas, o respeito ao direito adquirido; ao devido processo administrativo, com garantia da paridade entre as armas, todos erigidos a direitos fundamentais previstos na Constituição Federal de 1988.
A Colaboração Premiada está à beira do descrédito, do seu próprio suicídio. Enquanto não surgir uma legislação que trate o instituto jurídico de forma equilibrada e plena, compete ao operador do direito, ao exegeta, interpretá-lo à luz dos princípios constitucionais, e de forma interdisciplinar com os demais ramos do direito. A supressão célere de tantas dúvidas e questionamentos é medida que se impõe!
Rafael Faria é advogado criminalista, especialista em crimes financeiros, professor de processo penal da Universidade Cândido Mendes, sócio do escritório RSFARIA advogados.
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Advogado em São José do Rio Preto