“Presidencialismo de coalizão” é improviso há quase 30 anos
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As constantes denúncias de corrupção de políticos e partidos políticos no Brasil têm dado força a reflexões sobre a crise do sistema de governo brasileiro, chamado comumente de “presidencialismo de coalizão” e estimulado os clamores por reformas nesse sistema.
A título de exemplo, cito a coluna de Igor Gielow publicada no jornal Folha de S.Paulo no dia 28 de junho de 2017:
“A crise quase terminal do governo de Michel Temer, e insisto no quase porque o peemedebista não se chama Dilma Rousseff, está levando ao epílogo do status quo implantado pela velha Nova República, inaugurada em 1985 e plasmada na Constituição de 1988. (…)
O “silver lining” da barafunda (…) consiste na possibilidade de que alguma coisa melhor saia da crise, seja qual for o desfecho dela.
O que seria isso? A revisão das bases representativas da política. A resposta mais óbvia seria a adoção do parlamentarismo, já que todo presidente precisa compor com uma maioria estável no Congresso para governar. A supracitada Dilma foi executada nessas condições, e Temer agora incinera sua pinguela para manter o semiparlamentarismo tão eficaz até a primeira crise que o atingiu diretamente.
O triste é que estamos no Brasil, e um parlamentarismo daria no que a Itália do pós-guerra teve de pior: um gabinete caindo após o outro. (…)
O problema é que o presidencialismo de coalizão também morreu após 13 anos do projeto petista de poder, que instituiu uma espécie de terrorismo de Estado nos cofres da nação[1].”
Sem endossar os juízos do autor sobre pessoas e partidos políticos ou a sua análise da conjuntura política ou da situação do governo, eu gostaria de chamar a atenção para a relação que o texto estabelece entre os elementos criminal e constitucional da crise política que o Brasil vem vivendo desde, pelo menos, 2015, ano em que o Brasil começou a contemplar como real a possibilidade de que Dilma Rousseff, reconduzida à presidência da República, não terminasse seu mandato.
O elemento criminal mencionado no texto é, sem dúvida, a corrente incessante de acusações de que políticos podem ter se beneficiado de enormes esquemas de corrupção. Esses esquemas seriam montados em conluio com algumas das maiores empresas brasileiras e transfeririam recursos públicos para empresas, seus dirigentes e familiares, partidos, políticos e familiares.
O elemento constitucional é o sistema representativo brasileiro que, pelo que aponta o texto, estaria sendo levado à falência pelo elemento criminal. Aqui entra o chamado “presidencialismo de coalizão”, um conceito relativamente frouxo, mas útil para descrever a forma como funciona o poder político eleito no Brasil.
Segundo a definição mais aceita, o “presidencialismo de coalizão” seria o sistema de governo ou regime político adotado pela Constituição de 1988 e reuniria duas características principais e interligadas. A primeira é o fato de o sistema brasileiro mesclar características do sistema parlamentarista e do sistema presidencialista, principalmente no que se refere à taxa de êxito de aprovação de proposições legislativas de iniciativa do poder executivo. Essa é a característica mais enfatizada pela ciência política.
A segunda é o fato de os governos não serem unipartidários, mas sim montados por uma multidão de partidos políticos que dividem entre si os ministérios que compõem o Poder Executivo no Brasil. Assim, ao contrário da imagem que comumente se faz do presidencialismo norte-americano, os ministérios não seriam todos ocupados por autoridades apoiadas pelo partido político do presidente da República, mas sim por um conjunto de partidos que pode, a qualquer momento, se retirar do governo.
Essa característica é destacada pelo Direito Constitucional, mais preocupado com o tema da separação de poderes do que com a taxa de sucesso de projetos de lei[2]. De todo jeito, as duas características são interligadas, de modo que podemos resumir o presidencialismo de coalizão, na definição mais aceita, da seguinte forma: haveria uma divisão do Poder Executivo entre diversos partidos, o que garantiria uma larga base parlamentar governista e, por consequência, uma alta taxa de aprovação de proposições legislativas de interesse do executivo, se não inteiramente de sua iniciativa[3].
As conexões que hoje se fazem entre esses dois elementos, o criminal e o constitucional, na crise política brasileira são variadas. A do texto transcrito acima parece ser a de que o elemento criminal levou à falência do sistema de governo, elemento constitucional, mas outros analistas fazem a relação contrária: seriam as distorções do elemento constitucional que teriam levado os componentes do sistema político a recorrer a expedientes criminosos. Em ambos os casos, no entanto, o que se defende é uma reforma política para romper essa correlação entre o elemento constitucional e o elemento criminal no coração do presidencialismo de coalizão.
O que eu gostaria de apontar nessa coluna é a inconveniência de se reformar um sistema de governo tendo por horizonte apenas a luta contra a corrupção. Ou, em outras palavras, a necessidade de se quebrar essa relação automática entre os elementos criminal e constitucional da crise.
Em primeiro lugar porque, embora os sistemas políticos devam ter mecanismos que impeçam sua captura pela corrupção, nenhum sistema político importante foi feito apenas com esse objetivo, mas sim para garantir valores mais profundos, como a liberdade, a igualdade, a propriedade, os direitos humanos.
Esses valores se traduzem em configurações de governos moderados, ou governos social-democratas ou socialistas, ou outros modelos. Em segundo lugar, e é esse o principal ponto do texto, porque me parece que um dos problemas do sistema de governo do Brasil atual é justamente a falta de sua correspondência a um ou mais desses valores mais profundos.
Para defender a plausibilidade da minha sugestão, quero voltar ao seminal texto de Sérgio Abranches sobre o presidencialismo de coalizão[4]. Aquele texto, pleno de insights sobre o processo constituinte que levou àquela solução institucional, parece ter sido pouco explorado em vários pontos. Gostaria de indicar um que merece a atenção dos especialistas do Direito Constitucional interessados no problema da relação entre os elementos criminal e constitucional na crise política brasileira.
Trata-se do problema da formação de consensos durante o processo constituinte. Embora o ponto não tenha sido muito bem desenvolvido ali, Abranches registra que, naquele momento de saída da ditadura para a democracia, as forças políticas presentes à elaboração da Constituição tinham dificuldade de chegar a consensos constitucionais substantivos, além do compromisso com a democracia. Descrevendo o momento, Abranches afirma:
Há um claro “pluralismo de valores”, através do qual diferentes grupos associam expectativas e valorações diversas às instituições, produzindo avaliações acentuadamente distintas acerca da eficácia e da legitimidade dos instrumentos de representação e participação típicos das democracias liberais. Não se obtém, portanto, a adesão generalizada a um determinado perfil institucional, a um modo de organização, funcionamento e legitimação da ordem política[5] (destacamos)
E depois:
A probabilidade de acumulação de conflitos em múltiplas dimensões, precariamente contidos pelo pacto mais genérico de transição democrática – que foi brevemente revigorado durante o período de sucesso do Plano Cruzado -, bem como de sucessão de ciclos de instabilidade, aumenta na proporção em que as energias da nova direção política (no Legislativo e no Executivo) são consumidas na administração de crises[6] (destacamos)
Esses fragmentos apontam para a existência de dificuldades, àquela época, de se chegar a consensos principiológicos básicos, além do compromisso “mais genérico” com a democracia, a partir dos quais aderir a um perfil institucional coerente.
Com efeito, se olharmos com atenção para a nossa Constituição, veremos que essa dificuldade de formulação de um consenso básico que fosse além do compromisso com a democracia se espraia por todo o seu texto. São mais de 350 artigos tratando de temas muitas vezes de natureza tipicamente legislativa além de uma multiplicidade de princípios que, segundo o constitucionalismo mais influente, entram em conflito constantemente.
O próprio poder constituinte originário previu uma regra de revisão constitucional dentro de cinco anos da promulgação do texto[7]. Essa dificuldade de formação de um consenso mais profundo, que se refletiu na profusão legislativa-constituinte, tem uma consequência prática: a necessidade de se alterar a Constituição para governar. Desde 1992, aprovaram-se em média 4,4 emendas à Constituição por ano[8]. No Brasil, governar é alterar a Constituição.
A dificuldade de consenso se refletiu também na opção por um sistema de governo no qual, parece-me, a opção principal foi por estabelecer uma relação entre Estado e sociedade, e não um sistema de freios e contrapesos. Já defendi em outra coluna neste Observatório[9] que o presidencialismo de coalizão, pelo menos na definição de Abranches, reflete muito mais o estabelecimento de um mecanismo de legitimação do Estado graças a uma completa abertura às demandas da sociedade, pela via da representação proporcional e do multipartidarismo autorregulado, do que um sistema de separação de poderes no qual um Poder Legislativo forte pudesse realmente servir de contrapeso ao Executivo.
A configuração de um conjunto de mecanismos de controle do poder sobre o poder parece ter ficado a reboque das decisões sobre como o poder se relacionava com a sociedade. Por outro lado, a Constituição de 1988 cumulou o presidente da República de poderes legislativos[10], o que, aliás, termina sendo uma das poucas garantias de funcionamento do mecanismo do presidencialismo de coalizão.
Se o excesso de abertura do Congresso Nacional, com uma previsível fragmentação partidária, impedisse o processo decisório, o presidente da República poderia destravá-lo mantendo o governo em ação[11]. A impressão é que, na dúvida sobre qual separação de poderes fazer[12], a Constituição parece ter querido uma superposição de poderes.
Hoje, quase 30 anos depois de promulgada a Constituição, já se pode dizer que a sociedade brasileira foi capaz de chegar a alguns consensos. Um deles é o de que o atendimento das demandas da sociedade não justifica o aumento da inflação; outro é o reconhecimento de que o Estado não pode extrair recursos da sociedade indefinidamente; outro, registrado pela literatura econômica, é o compromisso radical com a inclusão social[13]. Outro consenso, ainda, é o de que os governantes devem ter responsabilidade fiscal[14].
Enquanto isso, o presidencialismo de coalizão parece ser ainda uma improvisação a completar 30 anos, sem outro objetivo que o de impedir o país de regredir no seu compromisso com a democracia. Muito mais do que a ideia de combater o crime de corrupção, o que deve guiar os debates sobre as mudanças no sistema político é a atualização desse sistema para que ele seja capaz de realizar aquelas aspirações mais profundas que a sociedade brasileira hoje já é capaz de expressar.
[2] Sobre a abordagem constitucionalista ao presidencialismo de coalizão ver Sérgio Antônio Ferreira Victor. Presidencialismo de coalizão. Exame do atual sistema de governo brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2015.
[3] É quase desnecessário dizer que, a ser verdadeira minha interpretação, o presidencialismo de coalizão seria uma negação do parlamentarismo e não sua mescla com o presidencialismo, já que, naquele sistema o poder executivo é o resultado das eleições legislativas, enquanto no presidencialismo de coalizão a maioria legislativa é o resultado das eleições para o cargo de presidente da República. Isso parece, no entanto, ser uma tendência histórica brasileira.
Para ilustrar a afirmação, convido o leitor a ler o discurso do sorites, proferido por Nabuco de Araújo em 1868, ou a descrição de Alberto Sales, irmão do então presidente Campos Sales, sobre a inversão do sistema representativo durante a República Liberal. Ambos podem ser encontrados no artigo de José Murilo de Carvalho “República, democracia e federalismo. Brasil 1870-1891” in VARIA HISTORIA, vol. 27, nº 45, p. 141-157, jan-jun 2011.
[4] Sérgio Henrique Hudson Abranches. Presidencialismo de coalizão: o dilema institucional brasileiro, in Dados. Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro. Vol. 31, n. 1, 1988, p. 5-34.
[5] Sérgio Henrique Hudson Abranches. Presidencialismo de coalizão: o dilema institucional brasileiro, in Dados. Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro. Vol. 31, n. 1, 1988, p. 6.
[6] Sérgio Henrique Hudson Abranches. Presidencialismo de coalizão: o dilema institucional brasileiro, in Dados. Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro. Vol. 31, n. 1, 1988, p. 9.
[8] São 99 emendas à Constituição desde que a primeira delas foi promulgada, em 1992: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/Emendas/Emc/quadro_emc.htm
Lee Alston, Marcus André Mello, Bernardo Mueller, e Carlos Pereira contam uma média de 4.4 emendas à constituição por ano desde 1992: “For the period from 1992 (when the first amendment was approved) to 2003, the average yearly rate of amendment is 4.4—an extremely high rate by any standard”. In Political Institutions, policymaking processes and policy outcomes in Brazil. Research Network Working Paper nº R-509. Inter-American Development Bank. 2006, p. 14.
[10] Entre vários autores que notaram a preeminência do presidente da República do Brasil, destacamos Lee J. Alston e Bernardo Mueller, que afirmam o seguinte: “For our purposes the most notable feature that emerged from the Constitution of 1988 was the extent of legislative powers conferred to the Executive. The powers of most importance are: 1) the power to establish the status quo through provisional decrees; 2) the sole authority to initiate certain types of legislation, e.g. budgetary and administrative issues; 3) the execution of the budget; 4) the ability to appoint a cabinet (though like the U.S. this is subject to the approval of the Senate); and 5) immense discretion over patronage jobs. We will elaborate briefly on each of these powers.” Pork for Policy: Executive and Legislative exchange in Brazil, 2005, p. 5.
[11] Isso é ainda mais verdade da redação original da Constituição, que permitia a reedição ilimitada de medidas provisórias, o que foi mudado em 2001, por meio da Emenda à Constituição 32.
[12] O fato de que o poder constituinte originário tenha previsto um plebiscito para confirmar suas escolhas sobre forma e sistema de governo para 5 anos após a promulgação da Constituição corrobora a ideia da hesitação do constituinte.
[13] Ver Lee J. Alston, Marcus Melo, Bernardo Mueller, and Carlos Pereira. Changing social contracts: beliefs and dissipative inclusion in Brazil. NBER Working Paper No. 18588. December 2012, p. 25: “In Brazil the force is the overarching belief in social inclusion. If this belief were not strongly rooted and infused in the country’s lifeblood, from the Constitution to the culture, the judiciary, the press, the educational system and the political parties, the policies aimed at achieving openness, empowerment and inclusion would be in vain.”
E também Marcos Mendes. Por que o Brasil Cresce Pouco? Desigualdade, Democracia e Baixo Crescimento no País do Futuro. Campus Elsevier, 2014.
[14] Foi o descumprimento desse consenso que fez com que uma presidente da República sofresse o impeachment, e não a simples perda de apoio no Congresso, como parece afirmar o articulista citado no início da coluna.
Eliardo Teles Filho é advogado, professor e doutorando em Direito pela École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), de Paris.
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Advogado em São José do Rio Preto