Marcelo Mazzola: Ação rescisória exige tutela jurisdicional colaborativa
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Todos aqueles que participam do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva (art. 6º do CPC).
No caso do juiz, o dever de cooperação engloba os deveres de a) esclarecimento (agir de modo transparente e pragmático, proferindo comandos claros e objetivos); b) consulta (incentivar o diálogo e fomentar o debate); c) prevenção (alertar riscos e diligenciar para que os atos processuais não sejam praticados de forma viciada ou para que possam ser corrigidos rapidamente – noção intimamente ligada à ideia de primazia de mérito[1]; e d) auxílio (remover obstáculos impeditivos e reduzir desigualdades).
Ainda sustentamos o dever de comprometimento do juiz, que compreende a ideia de operosidade[2] e de máxima dedicação à causa. A ideia é dar todo o rendimento possível a cada processo em si mesmo considerado e garantir o comprometimento do magistrado na entrega da prestação jurisdicional. Em outras palavras, é agir com eficiência e extrair o máximo de produtividade da atividade judicante, com menor dispêndio de tempo e de recursos.[3]
Em razão das dimensões reduzidas deste texto, analisaremos algumas situações envolvendo a atuação colaborativa do juiz especificamente em sede de ação rescisória.
A primeira delas diz respeito à possibilidade de emenda da petição inicial – embora não haja previsão expressa no capítulo pertinente (arts. 966 a 975 do CPC) –,[4] seja por força da aplicação subsidiária do procedimento comum à ação rescisória (arts. 318, parágrafo único, c/c 321 do CPC), seja em razão do dever de cooperação do juiz (art. 6º do CPC).
Sob esse prisma, se o autor propuser a ação rescisória (demanda que possui fundamentação vinculada) sem indicar, por exemplo, a respectiva causa de pedir (um dos incisos do art. 966 do CPC), compete ao magistrado, antes de indeferir a petição inicial, intimar a parte para manifestar-se a respeito, prestigiando o dever de esclarecimento.
Da mesma forma, se o autor não comprovar, no ato de distribuição da ação rescisória, o depósito de 5% sobre o valor da causa (art. 968, § 2º, do CPC),[5] cabe ao juiz, antes de indeferir a petição inicial, intimar o demandante para efetuar ou comprovar o aludido depósito. A providência está em linha com a ideia de primazia de mérito e materializa o dever de prevenção.
Uma questão que, vez ou outra, atormenta a vida dos advogados gira em torno do endereçamento da ação rescisória, diante da dificuldade em se identificar a decisão rescindenda. Isso normalmente acontece quando o tribunal “não conhece” do recurso, mas, na verdade, enfrenta o mérito da questão, operando-se, na prática, a substituição da decisão anterior.
Justamente para evitar extinções prematuras de ações rescisórias,[6] o legislador, em linha com o modelo colaborativo de processo, estabeleceu expressamente que, uma vez reconhecida a incompetência do tribunal, “o autor será intimado para emendar a petição inicial, a fim de adequar o objeto da ação rescisória, quando a decisão apontada como rescindenda não tiver apreciado o mérito e não se enquadrar na situação prevista no § 2º do art. 966 e tiver sido substituída por decisão posterior” (art. 968, § 5º, I e II, do CPC).[7]
No que tange à improcedência liminar do pedido (art. 332 do CPC), instituto que também se aplica à ação rescisória (art. 968, 4º, do CPC), não há dispositivo legal determinando que o juiz ouça o demandante antes de fulminar o respectivo pleito, seja com base nos precedentes de observância obrigatória, seja em razão da prescrição ou decadência (art. 487, parágrafo único, do CPC). A percepção é de que, nesse caso específico, o legislador autorizou o juiz a decidir de ofício, sem a prévia oitiva da parte interessada.
Apesar de não nos parecer a melhor orientação, em razão do dever de consulta (art. 6º do CPC)[8] e do contraditório-participativo (arts. 9º e 10 do CPC), a sistemática, no procedimento comum, não traz maiores prejuízos, já que o contraditório pode ser exercido na apelação, havendo, inclusive, possibilidade de efeito regressivo. Ou seja, o juiz pode se retratar (art. 332, § 3º, do CPC).
Na ação rescisória, porém, dadas as suas particularidades, existe uma situação na qual o dever de consulta é inegociável: quando a improcedência liminar emana de acórdão de julgamento proferido pelo tribunal. Isso porque, nesse caso, a parte só terá como manejar recurso especial ou recurso extraordinário, recursos com fundamentação vinculada, sem amplo contraditório e que não têm previsão de juízo de retratação.[9] Trata-se de questão sensível que demanda cuidado especial por parte dos tribunais.
Por fim, no que toca ao dever de auxílio, o novo diploma processual estabelece que, se os fatos alegados pelas partes dependerem de prova (decisão rescindenda baseada em prova falsa, por exemplo – art. 966, VI, do CPC), o relator poderá delegar a competência ao órgão que proferiu a decisão rescindenda, fixando prazo de um a três meses para a devolução dos autos.
Trata-se de exemplo de delegação de competência e “cooperação transjudicial”[10] lastreado no dever de auxílio, cuja finalidade primordial é remover eventuais obstáculos impeditivos,[11] assegurar a “paridade de tratamento” (art. 7º do CPC) e garantir a efetividade (art. 8º do CPC).
Um registro final: até que as cortes superiores definam algumas controvérsias relacionadas à ação rescisória, como o início do prazo decadencial quando a decisão rescindenda for uma interlocutória parcial de mérito (apesar do disposto no art. 975 do CPC, discute-se se o termo a quo deve ser contado da última decisão proferida no processo ou se a partir do trânsito em julgado de cada parcela do pedido), não se pode surpreender o jurisdicionado. A segurança jurídica e a confiança são vetores estruturantes do ordenamento jurídico.
Assim, não deve ser reconhecida eventual decadência caso o interessado, por algum motivo,[12] proponha a ação rescisória dois anos após o trânsito em julgado de parcela do pedido, mas antes do trânsito em julgado da última decisão proferida no processo. Caso contrário, estar-se-ia violando frontalmente o dever de prevenção.
Na realidade, e isso serve como regra geral, pensamos que toda vez que determinada norma for objeto de divergência doutrinária e jurisprudencial, o juiz deve indicar expressamente o seu posicionamento nos mandados de citação/intimação, despachos e decisões, a fim de prevenir prejuízos e consequências processuais decorrentes de eventual interpretação equivocada. Se assim não agir, deve – ao menos em caso de “dúvida razoável” – reconhecer oportunamente a validade do ato, se, nesse ínterim, a matéria vier a ser pacificada em sentido contrário àquele que o praticou.
Em resumo, o dever de cooperação é norma fundamental do processo civil e deve permear toda a atividade jurisdicional, a fim de garantir maior coesão, integridade e unicidade sistêmica.
[1] A expressão foi difundida por Fredie Didier em textos e palestras (http://www.frediedidier.com.br/editorial/editorial-53/), e abordada em DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil. v. 1. 17ª ed. Salvador: Jus Podivm, 2015, p. 136-137. Para o doutrinador, “o órgão deve priorizar a decisão de mérito, tê-la como objetivo e fazer o possível para que ocorra. A demanda deve ser julgada – seja ela a demanda principal (veiculada pela petição inicial), seja um recurso, seja uma demanda incidental”.
[2] CARNEIRO, Paulo Cezar Pinheiro. Acesso à Justiça: Juizados Especiais Cíveis e Ação Civil Pública. Uma nova sistematização da Teoria Geral do Processo. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003.
[3] MAZZOLA, Marcelo. Cooperação e Operosidade. A inobservância do dever de colaboração pelo juiz como fundamento autônomo de impugnação. Dissertação de Mestrado em Direito Processual, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2017.
[5] PINHO. Humberto Dalla Bernardina de. Direito Processual Civil Contemporâneo. v. 2. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 837. Vale registrar que o valor não pode ser superior a 1.000 (mil) salários mínimos (art. 968, § 2º, do CPC).
[6] Dentro dessa ideia de aproveitamentos dos atos processuais e prestígio à primazia de mérito, vale registrar que o STJ já converteu ação rescisória (inadequadamente proposta) em querela nullitatis, remetendo-se os autos ao juízo competente. STJ, EDcl nos EDcl na AR nº 569/PE, Primeira Seção, Rel. Min. Campbell Marques, DJe 30.08.2011.
[7] Nesse caso, após a emenda da petição inicial, o réu tem o direito de complementar os fundamento da defesa, antes da remessa dos autos ao tribunal competente (art. 968, § 6º, CPC).
[8] O dever de consulta não subtrai do juiz o poder de eleger a norma jurídica aplicável ao caso, mas o obriga, ao menos, a franquear às partes a oportunidade de influir e de participar da formação de seu convencimento. Até porque o magistrado pode perfeitamente mudar de opinião depois de ouvir as partes e melhor refletir. Entendemos, ainda, que o dever de consulta é fundamental para garantir a coesão do sistema dos precedentes criado pelo CPC (arts. 926 e 927).
A propósito, o parágrafo primeiro do art. 927 dispõe que “os juízes e os tribunais observarão o disposto no art. 10 e no art. 489, § 1º, quando decidirem com fundamento neste artigo”. Ou seja, o magistrado deve ouvir as partes antes de aplicar ou afastar o paradigma ao caso concreto.
[9] No mesmo sentido defendem Daniel Mitidiero e Luiz Guilherme Marinoni. MITIDIERO, Daniel; MARINONI, Luiz Guilherme. Ação rescisória – do juízo rescindente ao juízo rescisório. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017, p. 303-304.
[10] CABRAL, Antonio do Passo. Juiz natural e eficiência processual: flexibilização, delegação e coordenação de competências no processo civil. Tese apresentada no concurso de provas e títulos para provimento do cargo de Professor Titular de Direito Processual Civil da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2017.
[11] CARNEIRO, Paulo Cezar Pinheiro. Acesso à Justiça: Juizados Especiais Cíveis e Ação Civil Pública. Uma nova sistematização da Teoria Geral do Processo. Op. cit., p. 67.
[12] Pode ocorrer de o exequente resolver dar início ao cumprimento definitivo da parcela do decisum (art. 356, § 3º, do CPC) 2 anos após o respectivo trânsito em julgado.
Marcelo Mazzola é advogado e sócio do escritório Dannemann Siemsen Advogados. Mestre em Direito Processual pela Uerj e vice-residente de Propriedade Intelectual do Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem (CBMA).
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Advogado em São José do Rio Preto