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Lucieni Pereira: A reforma ideal para os tribunais de Contas

Advogado em Rio Preto | Amorim Assessoria Jurídica > ADI  > Lucieni Pereira: A reforma ideal para os tribunais de Contas

Lucieni Pereira: A reforma ideal para os tribunais de Contas

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Muito se discute sobre uma reforma ideal para aperfeiçoar os tribunais de Contas, de forma a garantir os meios necessários para o pleno exercício de sua missão institucional, com imparcialidade e desassombro. Os fatos revelados na operação “lava jato” e seus desdobramentos nos estados atestam a necessidade de destravar o debate nas comissões do Congresso Nacional, com vistas a criar o ambiente favorável para a construção de uma proposta de consenso.

Dentre as inúmeras propostas de emenda constitucional que tramitam no Congresso Nacional, três delas têm sido discutidas com frequência pelas associações nacionais que representam procuradores de Contas, auditores de controle externo e conselheiros titulares e substitutos: PECs 329/2013-CD, 40/2016-SF e 22/2017-SF — a primeira em tramitação na Câmara dos Deputados; as demais, no Senado Federal.

Não se pode deixar de citar a PEC 75/2007-CD, cujo escopo tem por finalidade remodelar, substancialmente, o figurino institucional dos tribunais de Contas e que, nos termos atuais, não apresenta sinais de consenso entre as associações nacionais, o que levou a autora da proposta a sinalizar com a sua disposição de trabalhar um texto substitutivo.

A definição do modelo ideal para os tribunais de Contas é uma missão que, embora seja desafiadora, não pode se transformar em utopia. Há, na própria Constituição de 1988, parâmetros fundamentais que podem conferir racionalidade ao debate e destravar a tramitação das propostas nas comissões do Congresso Nacional, onde se encontram paralisadas.

A necessidade de aperfeiçoamento com vistas a objetivar os atuais critérios de indicação e escolha dos membros, assim como a padronização nacional do processo de controle externo e do funcionamento dos órgãos de fiscalização (auditoria de controle externo), colegiados e Ministério Público de Contas parecem temas de consenso entre as associações de classe de âmbito nacional, congressistas, academia e sociedade civil, constituindo esses pontos mais de 2/3 do que é emergencial aperfeiçoar.

O debate, assim, parece travado por dois pontos aparentemente controversos: o primeiro diz respeito à composição dos tribunais de Contas; o segundo refere-se ao controle disciplinar dos ministros, conselheiros e procuradores de Contas, assim como ao controle da gestão administrativo-financeira dos tribunais e Ministério Público de Contas.

Sobre a composição dos tribunais de Contas, todas as propostas mencionadas apresentam avanços e desafios que merecem ser amplamente discutidos no fórum adequado, que é a Comissão Especial da Câmara dos Deputados. Para que isso aconteça, é necessário que a Comissão de Constituição e Justiça aprecie a admissibilidade da PEC 329/2013-CD, eleita prioritária por formadores de opinião, por se tratar de iniciativa suprapartidária da Frente Parlamentar de Combate à Corrupção, que dispõe de amplo apoio de segmentos importantes da sociedade civil.

Resta, portanto, enfrentar as controvérsias referentes aos controles disciplinar das autoridades e administrativo-financeiro dos tribunais. Sobre tais controles, a Associação da Auditoria de Controle Externo do Tribunal de Contas da União (AUD-TCU) se manifestou formalmente no processo administrativo que tramita no Tribunal de Contas da União para apreciar a PEC 329/2013-CD.

A Associação Nacional dos Membros dos Tribunais de Contas do Brasil (Atricon) defende a criação do terceiro conselho nacional específico para 33 tribunais de Contas (CNTC), à semelhança dos Conselhos Nacionais de Justiça e do Ministério Público (CNMP). Na Câmara dos Deputados, tramita a PEC 28/2007, com tal propósito. No Senado Federal, sobressaem as PECs 30/2007, 6/2013 e 22/2017.

As propostas que versam sobre a criação de mais um conselho nacional com poder de autogoverno se demonstram controversas sob dois prismas: institucional e fiscal.

As digressões sobre aspectos institucionais devem ser analisadas à luz da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que é pacífica no sentido de que os tribunais de Contas não mantêm qualquer relação de subordinação com as Casas Legislativas. Os tribunais, embora estejam previstos na Seção IX do Capítulo I do Título IV da Constituição de 1988, são instituições que devem observar, por imperativo constitucional, a mesma organicidade dos tribunais do Poder Judiciário, operando à sua semelhança.

O objetivo do constituinte originário não foi outro senão o de garantir a eficácia de salvaguardas efetivas ao erário e o devido processo legal na esfera de controle externo, mediante conformação institucional prevista para o TCU semelhante à dos tribunais do Poder Judiciário (artigo 73 c/c artigo 96).

A primeira observação necessária é que o constituinte tratou a fiscalização contábil, financeira e orçamentária em seção específica, para que o exercício dessa função não se confunda com a atividade tipicamente legiferante, própria dos parlamentares que integram as Casas Legislativas.

O segundo ponto a destacar refere-se à inequívoca intenção do constituinte de assegurar que a judicatura de contas se processe segundo a mesma organicidade do Poder Judiciário. Para tanto, os magistrados de Contas estão sujeitos à mesma lei complementar prevista no artigo 93 da Carta Política (Lei Orgânica da Magistratura – Loman), que institui os pilares para as ações disciplinares e correcionais.

A modelagem constitucional com vistas a dar concretude ao devido processo legal na esfera de controle externo, o que pressupõe assegurar garantias aos jurisdicionados sujeitos à fiscalização em tal esfera, completa-se com a previsão de um Ministério Público de Contas (artigo 130), órgão especializado e essencial à judicatura de contas, sem qualquer paralelo nas Casas Legislativas.

A compreensão do figurino constitucional previsto para a fiscalização e o julgamento na esfera de controle externo requer leitura sistemática, pois as previsões estão esparsas na Lei Maior.

Esse figurino específico, para não dizer anômalo, tem uma razão de ser: assegurar o devido processo legal na esfera de controle externo. No exercício de sua missão institucional, os tribunais de Contas podem julgar contas anuais ou ao longo da execução orçamentária para assegurar o ressarcimento do dano ao erário, aplicar sanções e determinar restrições a direitos, cujas decisões têm eficácia de título executivo, ou seja, não precisam de apreciação de mérito do Poder Judiciário para serem cobradas. São essas as competências institucionais que aproximam e exigem do TCU conformação análoga aos tribunais do Poder Judiciário.

Se, por um lado, o constituinte dispôs sobre a competência do TCU no capítulo do Poder Legislativo (Capítulo I – referente à função controle externo), por outro conferiu à corte de Contas a mesma organicidade do Poder Judiciário (Capítulo III) ao dispor, em duas passagens fundamentais, sobre a mesma tipologia organizacional do Poder Judiciário (artigo 96) e prerrogativas dos membros do Superior Tribunal de Justiça (artigo 93).

Pois bem. Se a organicidade dos tribunais de Contas não chega a ser anômala, pode-se afirmar ao menos que é atípica, razão pela qual as discussões sobre as cortes de Contas impõem uma leitura sistemática da Constituição de 1988.

No sistema constitucional de repartição de competências típicas, o controle exercido pelos tribunais de Contas deve ser feito de forma técnica, com equilíbrio e imparcialidade, sem as paixões inerentes aos debates parlamentares e aos interesses político-partidários que são próprios do funcionamento das Casas Legislativas.

Com essa conformação, demonstra-se harmônica com a Constituição de 1988 a inclusão dos tribunais de Contas no raio de abrangência disciplinar do CNJ, já que a Loman se aplica, sem distinção, a todos os magistrados, os quais detêm as mesmas prerrogativas (porte de arma para defesa pessoal, uso de toga, regras específicas para ser ouvido como testemunha e de prisão e carteira funcional especial, dentre outras prerrogativas previstas no artigo 33), garantias (vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de subsídio), vantagens (subsídios e auxílio-moradia em valores idênticos aos fixados para ministros do STJ e desembargadores dos tribunais de Justiça), devendo, consequentemente, se sujeitar aos mesmos impedimentos e vedações, inclusive os magistrados de Contas. Prerrogativa de magistrado, controle de magistrado!

Por maior razão, devem os procuradores de Contas se sujeitar ao CNMP. Não há fundamento plausível, sob a ótica da razoabilidade operacional e racionalidade fiscal, para a União manter dois conselhos nacionais destinados ao controle de magistrados (CNJ e CNTC) e mais dois para membros do Ministério Público (CNMP e CNMPC), perfazendo quatro estruturas nacionais. O risco de sobreposição de funções é enorme, criando ambiente fértil para decisões assimétricas sobre a aplicação das normas gerais que regem tais agentes públicos ocupantes de cargos vitalícios.

Nesse cenário de multiplicidade, há que se considerar o risco de proliferação de conselhos nacionais à semelhança do CNJ para interpretar a mesma norma disciplinar.

Convém relembrar que CNJ e o CNMP foram criados como resultado da legítima manifestação popular pelo fim da impunidade. O CNJ exerce o controle administrativo sobre a atuação de 94 tribunais e conselhos integrados de mais de 16,8 mil magistrados, segundo o censo[1]realizado em 2014, o que justificou a criação dos mecanismos de controle e accountability específicos.

Sendo o Judiciário a última trincheira da cidadania e o Ministério Público a instituição com competência privativa para oferecer denúncia contra crimes contra administração pública e improbidade administrativa, a inércia proposital ou a baixa efetividade dessas instituições para punir seus próprios membros por desvios de conduta constitui fator crítico para reduzir o índice elevado de percepção de impunidade. Sem a ação do Ministério Público em determinadas infrações, por autoproteção da classe, o Judiciário não tem como processar e julgar.

Essa não é, nem de longe, a realidade dos 32 tribunais de Contas estaduais e municipais, que dispõem de 224 conselheiros titulares, todos sujeitos ao controle da Procuradoria-Geral da República (em razão do foro por prerrogativa de função no STJ) e do Poder Judiciário da União, o que confere equilíbrio ao sistema de forças estaduais. Todavia, é oportuno aumentar o controle disciplinar sobre os membros dos tribunais e Ministério Público de Contas, o que não tem se demonstrado efetivo pelas Corregedorias locais, razão pela qual é salutar a proposta da PEC 329/2013, que elege o CNJ e o CNMP para tal função.

Sob o ponto de vista fiscal, não são menores os desafios decorrentes da criação do CNTC. Com deficit primário de R$ 139 bilhões para 2017 e previsão de deficit de R$ 131,3 bilhões para 2018, a União não ostenta condições fiscais favoráveis para criar novos órgãos com poder de autogoverno na administração pública federal.

A proposta que visa à criação de um novo conselho nacional também não considera as restrições a que estão submetidas as instituições federais em decorrência do longo período de vigência do novo regime fiscal, inclusive o TCU.

Soma-se a esse fato crítico a necessidade de redistribuir, a cada criação de conselho nacional com poder de autogoverno, os limites fixados para despesa com pessoal pela Lei de Responsabilidade Fiscal. A criação do CNTC, assim, implicaria a necessária redução dos limites de pessoal da Câmara dos Deputados, do Senado Federal e do próprio TCU, o que, por sua vez, pode comprometer a condução da política econômica caso haja descumprimento de um desses limites.

A PEC 22/2017 traz, ainda, um novo componente, que consiste na previsão de uniformização de jurisprudência em matéria de controle externo pelo CNTC, órgão de controle interno de natureza administrativo-disciplinar. O risco da proposta é elevado, uma vez que a União ficaria refém de demandas estaduais e municipais se as decisões do TCU em matéria de controle externo fossem vinculadas às deliberações do conselho nacional de índole administrativa.

Sob o ângulo constitucional, proposta com esse escopo rompe com a noção de República federativa, em que a União deve exercer papel definidor das normas gerais para toda federação, não o inverso. Não é plausível sujeitar os Poderes e as políticas públicas a cargo da União, dentre elas a política macroeconômica, a decisões do TCU vinculadas a deliberações de conselho administrativo como CNTC, cuja composição será majoritariamente de integrantes de órgãos estaduais e municipais.

Mais emergencial do que a criação de novas estruturas de controle, os tribunais de Contas carecem de instrumentos padronizados de accountability, que não são sinônimos, sendo o primeiro um dos componentes do segundo.

A instituição de um padrão mínimo nacional de organização e funcionamento de tais instituições de controle externo é o primeiro passo, mediante a instituição das condições constitucionais para edição, pela União, da lei orgânica nacional e do código nacional de processo de controle externo. É a lei orgânica nacional que poderá assegurar um padrão mínimo institucional nos 33 tribunais de Contas em toda federação.

Para além do desafio presente nas indicações, há um problema de base em vários tribunais estaduais e municipais, que é a falta de um quadro técnico de carreira e com independência profissional — de fato e de direito — garantida para o exercício das funções de auditoria.

O excesso de cargos comissionados nos tribunais estaduais e municipais — em total descompasso com as salvaguardas estatuídas na Lei Orgânica do TCU — associado ao valor injustificadamente desproporcional da retribuição de cargos em comissão e funções gratificadas (que pode chegar a R$ 21,3 mil no Rio de Janeiro contra R$ 4,9 mil no TCU), criam um quadro de dependência financeira propositada, o que faz da independência profissional dos auditores de controle externo “letra morta em papel”.

A permissividade com a participação de comissionados sem vínculo, servidores cedidos de órgãos fiscalizados pelo tribunal, servidores do próprio tribunal em desvio de função e até alocação de agentes terceirizados na execução da atividade finalística de controle externo também são fatores críticos que precisam ser superados, o que a PEC 40/2016-SF se propõe a reverter.

Para efetivação da accountability, contribuiria a instituição e manutenção, pela União, de um portal nacional de transparência e visibilidade, da Ouvidoria nacional, sendo bem-vinda a previsão em lei de um conselho ou colégio de presidentes dos tribunais de Contas, com vistas a promover a articulação entre tais instituições, criar uma instância permanente de debate sobre matérias de controle externo e interagir com a sociedade.

Também contribuiria para a efetivação da accountability a institucionalização de indicadores sobre o funcionamento efetivo dos tribunais de Contas, pactuados entre o colégio de presidentes com a participação da sociedade civil, constituindo mecanismo importante para avaliar se a padronização institucional reflete-se em uniformidade de procedimentos asseguradores das garantias processuais e de resultados.

Longe de constituir uma proposta de reforma ideal, o texto substitutivo elaborado pela AUD-TCU para subsidiar a discussão das PECs 329/2013-CD, 40/2016-SF e 22/2017-SF supera boa parte dos fatores críticos que, apesar dos inegáveis esforços empreendidos nos últimos anos, ainda comprometem a credibilidade da atuação dos tribunais de Contas, o que, por si só, justifica a urgência de destravar o debate sobre a PEC 329/2013 na CCJ/CD.

Lucieni Pereira é auditora federal de Controle Externo do Tribunal de Contas da União, professora de Finanças Públicas e presidente da Associação da Auditoria de Controle Externo do Tribunal de Contas da União (AUD-TCU).

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Advogado em São José do Rio Preto

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