É possível a colaboração premiada unilateral sem acordo com o MP?
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Recentemente, estamos todos habituados à colaboração premiada. Está na pauta do dia. Os noticiários — jurídicos ou genéricos — raramente encerram sem o anúncio de uma nova “delação” (o termo, por si só, já sugere o debate, mostrando-se desaconselhável pela forte carga preconceituosa que ostenta e pela limitação do instituto, “que não se limita à mera delatio”[1]).
A boa-nova, advinda da proliferação, é o diálogo do mundo jurídico com o dos leigos. Pipoca o interesse no aprofundamento do tema, sobre o qual, aliás, opina toda a gente. Por outro lado, a má notícia tende a se restringir ao Direito, muito especificamente relacionada aos limites da técnica (que têm de existir).
Diversas vozes se têm debruçado sobre a questão, brotando daí doutrina e jurisprudência. Os vazios, portanto, vêm sendo preenchidos, na exata medida em que surgem outros. Nosso intuito, neste brevíssimo artigo, é analisar uma específica interrogação: é possível a colaboração premiada unilateral? Em miúdos: os benefícios da colaboração demandam o prévio acordo com o Ministério Público?
A inquietação está, alertamos desde já, longe de ser acadêmica ou filosófica. Não se discute o sexo dos anjos. Vamos ao caso-tipo: instrução criminal do suposto cometimento do delito de tráfico de drogas[2].
Não raro (ou, se o leitor preferir, como frequentíssima regra), as provas colhidas se restringem ao depoimento de dois policiais e o do acusado. A experiência prática do defensor público em atuação em uma vara criminal o comprova. Os agentes estatais, comumente tendo estudado seu depoimento em sede policial minutos antes do início da audiência, a ele remetem, aduzindo que “estavam em patrulhamento de rotina, quando avistaram o nacional (inserir aqui o nome do réu), em atitude suspeita, procederam à abordagem, tendo encontrado com o mesmo (inserir quantidade) gramas de (inserir nome da substância entorpecente). Indagado se havia mais droga em algum lugar, o mesmo apontou voluntariamente o terreno próximo, colaborando com a arrecadação de mais (inserir quantidade e espécie de material entorpecente)”.
Por vezes, há, ainda, um brinde, consistente na indicação dos gerentes do tráfico na região, sua ligação com a facção (há quanto tempo estava praticando a conduta) e quanto recebia para tanto. A voluntariedade dessas declarações, realmente, chama atenção, seja pela suposta espontaneidade com que são prestadas, seja pela inocência pueril do réu. Mas fato é que, independentemente do teor do interrogatório, a sentença geralmente leva em consideração o contexto probatório e a chamada “confissão informal” como provas determinantes. E, pronto, mais uma condenação…
Para os estreitos limites desta reflexão, podemos até deixar de lado o “trabalho psicológico” feito pelos policiais para a obtenção dessas informações. O crucial é partirmos da seguinte premissa — a qual, repetimos, é tida como quase absoluta pela maioria dos julgadores: o acusado confessou, informalmente, e, não bastasse, indicou o local onde estava o restante do material entorpecente e/ou identificou seus chefes, bem como coautores e partícipes naquela empreitada específica.
Consubstanciado esse quadro, tem-se autêntica colaboração com a investigação lato sensu. Várias vezes, a defesa questiona aos milicianos se o réu colaborou, e os próprios agentes respondem positivamente.
Ocorre, no entanto, e é aqui que reside o vácuo por nós apontado, que o legislador quis, muito expressamente, que tal colaboração fosse premiada. Sim, exato: existe colaboração premiada sem os holofotes aos quais nos acostumamos, nos escuros das vielas de favelas e comunidades.
Não se trata de tese defensiva ou qualquer elucubração metafísica, mas, reiteramos, de clara opção legislativa, especificamente no artigo 41 da Lei de Drogas, que dita:
“O indiciado ou acusado que colaborar voluntariamente com a investigação policial e o processo criminal na identificação dos demais coautores ou partícipes do crime e na recuperação total ou parcial do produto do crime, no caso de condenação, terá pena reduzida de um terço a dois terços”.
Passemos a uma visão esquemática da situação autorizadora do “benefício” (leia-se direito público subjetivo do acusado):
- o benefício se refere ao indiciado e ao acusado, o que esclarece sua amplitude e aplicabilidade desde a fase inquisitorial, passando pela audiência de custódia, até a instrução processual[3];
- a colaboração deve se dar voluntariamente. Portanto, das duas uma: ou a contribuição se deu espontaneamente, como afirmam os policiais, ou há prova ilícita decorrente da pressão perpetrada, o que acarretaria a absolvição por insuficiência de elementos probatórios;
- o primeiro resultado possível é a identificação dos demais coautores ou partícipes. Em se tratando, por exemplo, do delito de tráfico de drogas (artigo 33), se refere aos agentes que atuaram naquela situação concreta examinada no processo; já se for caso do crime de associação (artigo 35), a elucidação da hierarquia da organização criminosa atende à exigência.
- a segunda via, alternativa[4], será a recuperação total ou parcial do produto do crime, o qual pode ser interpretado ampliativamente para abarcar tanto materiais entorpecentes como o dinheiro havido de sua comercialização, produto do crime direto e indireto, respectivamente.
Enquadrando-se a colaboração do acusado nessa moldura legal, a conduta do magistrado deverá igualmente segui-la, impondo-se a redução da pena de 1/3 a 2/3. O verbo está no futuro do presente para, didaticamente, indicar o poder-dever do juiz[5], reflexo da garantia do apenado consistente no princípio da legalidade penal. Tudo isso independentemente de qualquer prévio acordo com o Ministério Público, elemento absolutamente acidental na dinâmica pátria para o gozo do bônus oriunda da delação — que, em casos tais, é batizada de colaboração premiada unilateral.
Em suma, acreditamos, firmemente, que o instrumento da colaboração premiada veio para ficar, sendo capaz de contribuir para a construção do Brasil sonhado, desde que respeite os valores que o constituinte não negociou, mormente os direitos fundamentais do acusado, cuja missão precípua é protegê-lo, e o princípio da solidariedade, voltado à erradicação das desigualdades sociais — de todo contrário à limitação da técnica às delações pomposas dos grandes empresários e políticos, que geram sedutoras manchetes, distantes, contudo, da realidade cotidiana das varas criminais.
[1] ARAS, Vladimir. A Técnica de Colaboração Premiada. Disponível em: vladimiraras.blog/2015/01/07/a-tecnica-de-colaboracao-premiada. Acesso em 7/7/2017.
[2] Já se teve a oportunidade de vislumbrar situações análogas para crimes de outras espécies, como delitos ambientais: “Operação policial na Floresta Amazônica deságua na apreensão de meia tonelada de madeira extraída ilegalmente. Capturado em flagrante o vigia do galpão no qual estava depositada, aponta, voluntariamente, aos policiais outros 2 armazéns, propiciando a arrecadação de mais 1 tonelada de madeira e a prisão do gerente da organização, além de 2 agentes do IBAMA e 2 policiais federais, garantidores da operação de desmatamento ilegal, antecipando aos infratores as ações de repressão e providenciando rotas de fuga. Concretizados 2 dos resultados delineados no art. 4o, incisos I e IV, da Lei n 12.850/13, surge impensável negar ao colaborador o prêmio(…)”. SANTOS, Marcos Paulo Dutra. Colaboração (Delação) Premiada. 2. ed. Salvador: JusPodivm, 2017, p. 90.
[3] Para uma exaustiva elucidação dos momentos oportunos para traçar a colaboração: SANTOS, Marcos Paulo Dutra. Colaboração (Delação) Premiada. 2. ed. Salvador: JusPodivm, 2017.
[4] A alternatividade dos requisitos foi assentada pela 1ª Turma do STF (AI 820.480 AgR/RJ, rel. min. Luiz Fux, votação unânime) e pela 6ª turma do STJ (REsp 1.109.485/DF, rel. min. Maria Thereza de Assis Moura, votação unânime).
[5] Já o asseveramos em PINHO, Humberto Dalla Bernardina de; MELLO PORTO, José Roberto Sotero de. Colaboração Premiada: Um Negócio Jurídico Processual? In: ESPIÑEIRA, Bruno; CALDEIRA, Felipe (Orgs.). Delação Premiada – Estudos em Homenagem ao Ministro Marco Aurélio de Mello. Belo Horizonte: D’Plácido, 2016, p. 133.
José Roberto Sotero de Mello Porto é defensor público do estado do Rio de Janeiro, pós-graduado em Direito Privado pela Universidade Candido Mendes e mestrando em Direito Processual pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).
Marcos Paulo Dutra Santos é defensor público do estado do Rio de Janeiro e mestre em Direito Processual pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).
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Advogado em São José do Rio Preto