Convenção OIT 182 garante a proteção integral do adolescente
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O Brasil perpassou por diversos momentos na forma pela qual pune os seus cidadãos menores de 18 anos que venham a praticar ilícitos criminais. Até o início do século XX vigia um sistema que não diferenciava em essência a punição destes em relação aos adultos, apenas garantindo-lhes — quando muito — uma diminuição de pena[1].
Por sua vez, a partir do Código de Menores de 1927 — e do Código Penal de 1940 — estabeleceu-se que os menores de 18 anos não estariam sujeitos às medidas punitivas de natureza penal direcionadas aos adultos[2]. Neste momento temos a denominada etapa tutelar. Cria-se a figura do “menor em situação irregular”, entendendo-se que estes jovens cometiam eventuais ilícitos não por vontade própria mas por circunstâncias alheias as suas vontades.
Em tese, portanto, a resposta adequada não seria uma sanção propriamente dita mas medidas de caráter “não” sancionatório. Assim, mesmo representando um inegável avanço em relação à fase anterior, por vislumbrar o jovem como objeto de “proteção” estatal — e não como sujeito de direitos —, ainda se mantinha espaço para grandes críticas. Tomavam-se medidas sem qualquer garantia de devido processo legal, as quais se tornavam convite ao controle social, tendo por base em um ideal moralizador de justiça e de patrulha ideológica dos envolvidos. Por exemplo, autorizava-se que o juiz, mesmo quando absolvesse adolescente acusado de infração penal, poderia entregá-lo a patronatos, a tutores ou mesmo submetê-lo à liberdade vigiada[3].
Restava evidente um direito penal de autor, em lugar de um direito penal do fato, que não era aplicado nem mesmo para os adultos acusados dos mesmos delitos. Assim, criava-se uma categoria jurídica específica como oriunda desta fase: a do menor em oposição às crianças e adolescentes. E enquanto estes eram cuidados pelas suas famílias, aqueles eram de atribuição da Justiça de Menores, sendo o juiz antes de mais nada um bom pai de família que teria toda discricionariedade para decidir sobre “melhor” forma de correção do jovem.
Esta situação que não se alterou substancialmente durante a vigência da legislação menorista de 1979, apenas veio a sofrer intensa mudança a partir da promulgação da Constituição de 1988, a qual inaugurou a fase denominada garantista. Alterou-se a situação irregular do menor pela proteção integral e, principalmente após a edição do Estatuto da Criança e do Adolescente e da internalização da Convenção Internacional de Direitos das Crianças[4], incorporou-se uma série de direitos materiais e processuais para preservação dos direitos infanto-juvenis[5].
Reconhece-se, portanto, o jovem como sujeito de direitos, bem como autoriza-se a imposição de medidas socioeducativas aos menores de 18 anos e maiores de 12 anos. Ademais, reconhece-se que estas, antes de serem uma medida de proteção, possuem sim uma natureza repressiva e um viés de responsabilização do adolescente pela prática delitiva (artigo 1, §2º, I e III da Lei do SINASE[6]). Assim — e maneira diferente do que o senso comum possa sugerir —, inaugura-se finalmente um sistema de punição juvenil, bastante diferenciado em relação aos adultos e dotados de garantias peculiares.
Não por outra razão, veda-se que o adolescente tenha um tratamento mais gravoso que o do adulto, sendo as garantias a este determinadas um padrão mínimo de tratamento do jovem, algo que se percebe tanto na legislação interna[7], quanto em tratados internacionais[8]. Neste sentido, além das proteções criminais hodiernas, aos adolescentes poderão ser conferidas proteções especiais.
Garanta-se sempre a soltura antecipada do adolescente quando vislumbrada a realização das metas definidas nos planos individuais de atendimento[9] [10]; prevê-se a excepcionalidade da utilização de medidas em restritivas de liberdade e necessidade de justificativa para tanto[11]; tem-se a mitigação do princípio da indisponibilidade da ação penal para além das hipóteses previstas na Lei 9.099, ante uma ampla gama de situações nas quais o Ministério Público poderá conceder remissão ao adolescente, como forma de exclusão do processo[12]; fixa-se prazo máximo para internação provisória[13]; etc.
Estas garantias, por evidente, não são decorrentes apenas da legislação interna, mas igualmente, de tratados internacionais. Neste aspecto, por exemplo, torna-se claro que apesar de o ECA prever que o adolescente privado de sua liberdade deva ser levado à presença de membro do Ministério Público (artigo 174 e 175), o Pacto de San José (artigo 7.5) garante não só ao adulto, mas a qualquer pessoa — incluindo, portanto, o adolescente — o direito a ser levado e ouvido por autoridade judiciária sem demora. Assim, estabelece-se não só aos adultos, mas igualmente aos menores de 18 ceifados de seu direito ambulatorial a garantia à audiência de custódia.[14]
Interessante sobre a temática, tem-se a Convenção 182 da OIT — internalizada no Brasil pelo Decreto 3.597/2000. Esta convenção versa sobre as piores formas de trabalho infanto-juvenil, sendo dever estatal tomar medidas para elimina-los de forma prioritária (artigo 6º). Ademais, reconhece-se que uma das principais causas destas práticas é a pobreza e sua eliminação perpassa pelo necessário desenvolvimento social dos estados-signatários (preâmbulo).
Entre as piores formas de trabalho de jovens, referida convenção destaca: a escravidão e as práticas análogas; o recrutamento forçado em conflitos armados; a prostituição infantil e atuações pornográficas; e a produção e tráfico de drogas (artigo 3º). Ainda, cabe aos estados-signatários adotar medidas eficazes para impedir a utilização de crianças nessas práticas e prestar assistência e reabilitação dos jovens nestas condições (artigo 7.2).
A pobreza, portanto, não é vista apenas como causa das piores formas de trabalho infantil, mas como obstáculo à efetivação dos Direitos Humanos como um todo, sendo necessária a tomada de medidas pela comunidade internacional no sentido de combatê-la[15].
Em outras palavras, há o dever estatal de proteção das crianças nestas condições, punindo-se aqueles que usam a força de trabalho infantil em referidas situações. Ou seja, segundo a normativa internacional em comento, as crianças e adolescentes utilizadas pelo tráfico de drogas são sempre vítimas dessa prática. Por outro lado, caso admitamos a punição de jovens nestas circunstâncias o adolescente seria paradoxalmente vítima e autor da conduta delitiva, não restando alternativa, exceto afastar a culpabilidade do adolescente nestas circunstancias.
Conclui-se, portanto, que a Convenção OIT 182 além de implicar um dever estatal de ação, no sentido de retirar os jovens de trabalho nestas condições, mostra-se, igualmente, como um critério de abstenção estatal. Proíbe-se que este venha adotar medidas punitivas contra jovens nestas circunstancias. Em outras palavras, cria-se uma garantia para adolescente, diversa da existente para adultos. Aqueles, por serem sempre vítimas do tráfico de drogas, jamais poderão ser punidos por atos infracionais análogos ao tráfico, sob pena de violação de aludido tratado de direitos humanos[16].
[1] De acordo com as Ordenações Filipinas – vigente no Brasil em matéria criminal até a edição do Código Criminal do Império -, estabelecia-se a imputabilidade penal a partir dos 7 anos. Apenas proscrevia-se a pena de morte aos menores de 17 anos e lhes garantiam certa diminuição de pena. Entre 17 e 21 anos havia um sistema de punição de jovens adultos e estes poderiam ser condenados à pena capital, dependendo de certas circunstâncias. A partir dos 21 anos, tinha-se a imputabilidade plena.
Em 1830, instituiu-se o Código Criminal do Império. Este diploma estabelecia em seu art. 10 que não haveria julgamentos de menores de 14 anos – porém, seus bens poderiam ser usados para reparação do mal causado (art. 11) – exceto se restasse comprovado que agiam com discernimento, caso em que seriam recolhidos a casas de correções pelo tempo que o juiz entendesse necessário mas sem que pudessem exceder a idade de 17 anos nessas localidades (art. 13). Por sua vez, àqueles entre 14 aos 21 anos estabeleciam-se penas atenuados, bem como proibia-se a pena de galés aos criminosos com menos de 21 anos (art. 45, §2º).
Durante o Código Penal da República de 1890, vedava-se a punição de menores de 9 anos e os entre 9 e 14 sem discernimento (art. 27). Entre 14 e 21 anos estabeleciam-se penas atenuadas.
[2] Com o Código de Menores (1927) tivemos grandes mudanças na forma de punição dos jovens, dentre as quais destacam-se: os menores de 14 anos não eram submetidos a processo penal (art. 68); àqueles entre 14 e 18 anos estabelecia-se um processo especial (art. 69), permitindo-se que ficassem em estabelecimento de reeducação até os 21 anos de idade; e aos jovens entre 18 e 21 estabelecia-se pena atenuada, bem como determinava-se que estes deveriam permanecer separados dos adultos durante tal lapso etário (art. 76 e 77). Finalmente, o Código Penal de 1940 reforçou inimputabilidade penal dos menores de 18 anos, os quais sempre estariam sujeitos a uma legislação especial (art. 23 da redação original deste diploma).
[3] “Art. 73. Em caso de absolvição o juiz ou tribunal pode: a) entregar o menor aos pais ou tutor ou pessoa encarregada da sua guarda, sem condições; b) entrega-lo sob condições, como a submissão ao patronato, a aprendizagem de um officio ou uma arte, a abstenção de bebidas alcoolicas, a frequencia de uma escola, a garantia de bom comportamento, sob pena de suspensão ou perda do patrio poder ou destituição da tutela; c) entrega-lo a pessoa idonea ou instituto de educação; d) sujeita-lo a liberdade vigiada”.
[4] Esta é a convenção internacional com o maior número de signatários do globo, havendo apenas dois países que não a ratificaram: Somália e EUA.
[5] Para maiores detalhes sobre a evolução história do tratamento jovem em conflito com a lei, ver: SCHECARIA, Sério Salomão, Sistema de Garantias e o Direito Penal Juvenil. 1ª edição em e-book baseada na 1ª edição impressa, São Paulo: Ed. RT, 2015, item 1.3.
[6] “§ 2o Entendem-se por medidas socioeducativas as previstas no art. 112 da Lei no 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), as quais têm por objetivos: I – a responsabilização do adolescente quanto às consequências lesivas do ato infracional, sempre que possível incentivando a sua reparação; […] e III – a desaprovação da conduta infracional, efetivando as disposições da sentença como parâmetro máximo de privação de liberdade ou restrição de direitos, observados os limites previstos em lei” – grifos adicionados.
[7] Segundo o art. 35, I da L. SINASE, as medidas socioeducativas devem observar, entre outros, o princípio da: “legalidade, não podendo o adolescente receber tratamento mais gravoso do que o conferido ao adulto”.
[8] Segundo o item 54 das Diretrizes de Riad: “Com o objetivo de impedir que se prossiga à estigmatização, à vitimização e à incriminação dos jovens, deverá ser promulgada uma legislação pela qual seja garantido que todo ato que não seja considerado um delito, nem seja punido quando cometido por um adulto, também não deverá ser considerado um delito, nem ser objeto de punição quando for cometido por um jovem”.
[9] Art. 46, II, da L. SINASE.
[10] Aponta-se que a Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Mendoza e outros vs. Argentina reconheceu o dever dos estados signatários do CADH de promoverem revisões periódicas das medidas de privação de liberdade de adolescente reconhecendo que: “si las circunstancias han cambiado y ya no es necesaria su reclusión [do adolescente], es deber de los Estados poner a los niños en libertad, aun cuando no hayan cumplido la pena establecida en cada caso concreto” (§ 162, sentença de 14/05/2013).
[11] Art. 120, §2º e art. 122, ambos do ECA.
[12] Art. 126 do ECA.
[13] Art. 108 do ECA.
[14] A Corte Interamericana de Direitos Humanos já reconheceu este direito no caso Villagrán Morales e outros vs. Guatemala (Caso dos “Meninos de Rua”), parágrafos 133 a 135 da sentença de 19/11/1999. Em sentido próximo, o Comitê de Direitos da Criança assim se manifestou em sua Observação Geral 10 de 2007: “Every child arrested and deprived of his/her liberty should be brought before a competent authority to examine the legality of (the continuation of) this deprivation of liberty within 24 hours” (§83).
[15] Neste sentido: “A existência de uma pobreza extrema generalizada obsta ao gozo pleno e efetivo de Direitos Humanos; a sua imediata atenuação e eventual eliminação devem permanecer como uma das grandes prioridades da comunidade internacional” (Declaração e Programa de Viena de 1993, parte 1, item 14 – grifos adicionados). E também: “[A] pobreza extrema e a exclusão social constituem uma violação da dignidade humana e que são necessárias medidas urgentes para […] pôr fim à pobreza extrema e à exclusão social e a promover o gozo dos frutos do progresso social” (Declaração e Programa de Viena de 1993, parte 1, item 25 – grifos adicionados).
[16] Registre-se que já tivemos a oportunidade de analisar a questão da hierarquia dos tratados internacionais de Direitos Humanos, momento em que apontamos que o posicionamento do STF sobre a temática mostra-se equivocado e em desacordo com o entendimento da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Todavia, ainda assim, e mesmo que consideremos o entendimento da “supralegalidade” dos tratados internacionais de Direitos Humanos, restará esvaziada a possibilidade de condenação de adolescente por ato infracional análogo ao tráfico de drogas. Para maiores detalhes sobre a temática da hierarquia dos tratados de Direitos Humanos e o posicionamento da Corte IDH sobre o tema, ver: PASSADORE, Bruno de Almeida; e BANDEIRA, Nize Lacerda Araújo, A Incompreendida Proibição do Bis in Idem na Perspectiva Americana, in Revista Eletrônica “Consultor Jurídico” de 15/08/2017, disponível em http://www.conjur.com.br/2017-ago-15/tribuna-defensoria-incompreendida-proibicao-bis-in-idem-perspectiva-americana, acesso em 25/09/2017.
Bruno de Almeida Passadore é defensor público auxiliar do Núcleo de Cidadania e Direitos Humanos da Defensoria Pública do Paraná, presidente da comissão de Prerrogativas da Defensoria Pública do Paraná e mestre em Direito Processual Civil pela Faculdade de Direito da USP.
Camille Vieira da Costa é defensora pública coordenadora do Núcleo de Cidadania e Direitos Humanos da Defensoria Pública do Paraná.
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Advogado em São José do Rio Preto