Algumas aproximações entre direitos sociais e mínimo existencial
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Assim como ocorreu com o princípio da dignidade da pessoa humana, o assim chamado direito (garantia) a um mínimo existencial, no sentido de um direito (humano e fundamental) a prestações estatais que assegurem uma vida com dignidade passou a assumir uma posição de quase onipresença nas discussões que envolvem os direitos fundamentais sociais.
Convém relembrar, nesse contexto, que a atual noção de um direito fundamental ao mínimo existencial arranca da ideia de que qualquer pessoa necessitada que não tenha condições de, por si só ou com o auxílio de sua família prover o seu sustento, tem direito ao auxílio por parte do Estado e da sociedade, de modo que o mínimo existencial, nessa perspectiva, guarda alguma relação (mas não se confunde integralmente) com a noção de caridade e do combate à pobreza, central para a doutrina social (ou questão social) que passou a se afirmar já ao longo do Século XIX[1], muito embora a assistência aos desamparados tenha constado na agenda da Igreja e de algumas políticas oficiais já há bem mais tempo[2].
Convém recordar, ainda, que já na fase inaugural do constitucionalismo moderno, com destaque para a experiência francesa revolucionária, assumiu certa relevância a discussão em torno do reconhecimento de um direito à subsistência, chegando mesmo a se falar em “direitos do homem pobre”, na busca do rompimento com uma tradição marcada pela idéia de caridade, que ainda caracterizava os modos dominantes de intervenção social em matéria de pobreza, debate que acabou resultando na inserção, no texto da Constituição Francesa de 1793, de um direito dos necessitados aos socorros públicos, ainda que tal previsão tenha tido um caráter eminentemente simbólico[3].
De qualquer sorte, independentemente de como a noção de um direito à subsistência e/ou de um correspondente dever do Estado (já que nem sempre se reconheceu um direito subjetivo (exigível pela via judicial) do cidadão em face do Estado) evoluiu ao longo do tempo, tendo sido diversas as experiências em diferentes lugares, o que veio a refletir também no caso brasileiro.
No que diz com a relação do mínimo existencial com a dignidade da pessoa humana, a primeira afirmação textual, no plano, constitucional, ocorreu na Constituição da República de Weimar, Alemanha, em 1919, cujo artigo 151 dispunha que a vida econômica deve corresponder aos ditames da Justiça e tem como objetivo assegurar a todos uma existência com dignidade, noção que foi incorporada à tradição constitucional brasileira desde 1934, igualmente no âmbito da ordem econômica e/ou social, de tal sorte que o artigo 170 da Constituição de 1988 dispõe que “a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social…”.
É preciso lembrar, contudo, que na condição de finalidade ou tarefa cometida ao Estado no âmbito dos princípios objetivos da ordem social e econômica, o mínimo existencial, ou seja, o dever de assegurar a todos uma vida com dignidade, não implicava necessariamente (aliás, como não implica ainda hoje a depender do caso), salvo na medida da legislação infraconstitucional (especialmente no campo da assistência social e da garantia de um salário mínimo, entre outras formas de manifestação), uma posição subjetiva imediatamente exigível pelo indivíduo.
A elevação do mínimo existencial à condição de direito fundamental e sua articulação mais forte com a própria dignidade da pessoa humana e outros direitos fundamentais, teve sua primeira importante elaboração dogmática na Alemanha, onde, de resto, obteve também um relativamente precoce reconhecimento jurisprudencial, com destaque para a jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal, ademais da elaboração doutrinária predominante, de acordo com a qual a garantia das condições mínimas para uma existência digna integra o conteúdo essencial do princípio do Estado Social de Direito, constituindo uma de suas principais tarefas e obrigações.[4]
De qualquer modo, tem-se como certo que da vinculação com a dignidade da pessoa humana resulta que a garantia efetiva de uma existência digna (vida com dignidade) abrange mais do que a garantia da mera sobrevivência física (que cobre o assim chamado mínimo vital e guarda relação direta com o direito à vida), situando-se, de resto, além do limite da pobreza absoluta. Registre-se, neste contexto, a lição de Heinrich Scholler, para quem a dignidade da pessoa humana apenas estará assegurada “quando for possível uma existência que permita a plena fruição dos direitos fundamentais, de modo especial, quando seja possível o pleno desenvolvimento da personalidade”.[5]
Tal linha de fundamentação, em termos gerais, tem sido privilegiada também no direito constitucional brasileiro, ressalvada especialmente alguma controvérsia em termos de uma fundamentação liberal ou social do mínimo existencial e em relação a problemas que envolvem a determinação do seu conteúdo, já que, não se há de olvidar, da fundamentação diversa do mínimo existencial podem resultar conseqüências jurídicas distintas, em que pese uma possível convergência no que diz com uma série de aspectos.
Ainda no contexto do debate jurídico-constitucional alemão, é possível constatar a existência de uma distinção importante no concernente ao conteúdo e alcance do próprio mínimo existencial, que tem sido desdobrado num assim designado mínimo fisiológico, que busca assegurar as necessidades de caráter existencial básico e que, de certo modo, representa o conteúdo essencial da garantia do mínimo existencial, e um assim designado mínimo existencial sociocultural, que, para além da proteção básica já referida, objetiva assegurar ao indivíduo um mínimo de inserção – em termos de tendencial igualdade – na vida social, política e cultural[6].
Tal interpretação do conteúdo do mínimo existencial (conjunto de garantias materiais para uma vida condigna) é a que tem prevalecido não apenas na Alemanha, mas também na doutrina brasileira, assim como na jurisprudência constitucional comparada, notadamente no plano europeu, como dá, conta, em caráter ilustrativo, a recente contribuição do Tribunal Constitucional de Portugal na matéria, ao reconhecer tanto um direito negativo quanto um direito positivo a um mínimo de sobrevivência condigna, como algo que o Estado não apenas não pode subtrair ao indivíduo, mas também como algo que o Estado deve positivamente assegurar, mediante prestações de natureza material[7].
Mas é precisamente o caso de países como o Brasil, onde do ponto de vista do direito constitucional positivo é assegurado um generoso conjunto de direitos fundamentais sociais, que revela o quanto o reconhecimento de um direito ao mínimo existencial apresenta aspectos carentes de maior reflexão, a começar pela própria necessidade de se recorrer à noção de mínimo existencial quando o leque de direitos sociais cobre todas as suas possíveis manifestações.
Assim como se dá com a dignidade da pessoa humana, que não pode ser pura e simplesmente manejada como categoria substitutiva dos direitos fundamentais em espécie, também o mínimo existencial, mesmo quando se cuida de uma ordem constitucional que consagra um conjunto de direitos sociais, não pode (ou, pelo menos, não deve) ser considerado como inteiramente fungível no que diz com sua relação com os direitos sociais, de modo a guardar uma parcial e sempre relativa autonomia, que lhe é assegurada precisamente pela sua conexão com a dignidade da pessoa humana.
É nessa perspectiva que (o que se registra para espancar qualquer dúvida a respeito) comungamos do entendimento de que todos os direitos fundamentais possuem um núcleo essencial, núcleo este que, por outro lado, não se confunde com seu conteúdo em dignidade da pessoa humana (ou, no caso dos direitos sociais, com o mínimo existencial), embora em maior ou menor medida, a depender do direito em causa, um conteúdo em dignidade humana e/ou uma conexão com o mínimo existencial se faça presente, do que não apenas podem – como devem – ser extraídas consequências para a proteção e promoção dos direitos fundamentais.
No caso da Constituição Federal, diferentemente da Alemanha, onde inexistem direitos sociais típicos no catálogo constitucional, os direitos sociais não apenas foram consagrados como direitos fundamentais, quanto o foram de forma generosa em termos quantitativos, o que indica o caráter subsidiário da garantia do mínimo existencial, ao menos na sua condição de direito subjetivo autônomo.
Por outro lado, desde que não se incorra na tentação de chancelar a identificação total entre o núcleo essencial dos direitos sociais e o mínimo existencial, a noção de um mínimo existencial, tal como já demonstra também a evolução doutrinária e jurisprudencial brasileira, opera como relevante critério material (embora não exclusivo) para a interpretação do conteúdo dos direitos sociais, bem como para a decisão (que em muitos casos envolve um juízo de ponderação) a respeito do quanto em prestações sociais deve ser assegurado mesmo contra as opções do legislador e do administrador, mas também no âmbito da revisão de decisões judiciais nessa seara.
Por outro lado, precisamente no âmbito de tal processo decisório (que envolve o controle das opções legislativas e administrativas) não se deve perder de vista a circunstância de que, quando for o caso, o que se poderia designar de um “conteúdo existencial” não é o mesmo em cada direito social (educação, moradia, assistência social, lazer, etc.) não dispensando, portanto, a necessária contextualização em cada oportunidade que se pretender extrair alguma conseqüência jurídica concreta em termos de proteção negativa ou positiva dos direitos sociais e do seu conteúdo essencial, seja ele, ou não, diretamente vinculado a alguma exigência concreta da dignidade da pessoa humana.
Esta linha de entendimento, como se depreende de uma série de julgados, parece estar sendo privilegiada pelo STF, muito embora nem sempre este se tenha posicionado com clareza sobre a relação entre o núcleo essencial dos direitos sociais e o mínimo existencial, especialmente quanto ao fato de se tratar, ou não, de categorias fungíveis. De qualquer modo, impende sublinhar que no que diz com a orientação adotada pelo STF, os direitos sociais e o mínimo existencial exigem sejam consideradas as peculiaridades do caso de cada pessoa, visto que se cuida de direitos que assumem uma dimensão individual e coletiva, que não se exclui reciprocamente, cabendo ao poder público assegurar, pena de violação da proibição de proteção insuficiente, pelo menos as prestações sociais que dizem respeito ao mínimo existencial[8].
Por derradeiro, situando-nos, ainda, na esfera da compreensão da fundamentação jurídico-constitucional e do conteúdo de um direito ao mínimo existencial, importa sublinhar a impossibilidade de se estabelecer, de forma apriorística e acima de tudo de modo taxativo, um elenco dos elementos nucleares do mínimo existencial, no sentido de um rol fechado de posições subjetivas (direitos subjetivos) negativos e positivos correspondentes ao mínimo existencial, o que evidentemente não afasta a possibilidade de se inventariar todo um conjunto de conquistas já sedimentadas e que, em princípio e sem excluírem outras possibilidades, servem como uma espécie de roteiro a guiar o intérprete e de modo geral os órgãos vinculados à concretização dessa garantia do mínimo existencial.
A título de exemplo, calha referir decisão paradigmática do Tribunal Constitucional da Alemanha (2010, caso “Hartz IV”), onde além de reafirmar a existência de um direito autônomo, fundamental e subjetivo a um mínimo existencial como direito a prestações, o Tribunal referendou a posição de que o mínimo existencial cobre uma dimensão sociocultural, tendo, ademais disso, um conteúdo aberto e dinâmico, a ser concretizado em face das exigências variáveis da dignidade humana, integrando, por exemplo, até mesmo o direito de um acesso (ainda que limitado) a internet, dada a sua relevância para a integração social, política, cultural e econômica do cidadão, dialogando assim com o problema (e desafio) da inclusão digital.
Todavia, também é necessário destacar que o manejo da noção de um mínimo existencial (como direito e dever) pela doutrina, mas em especial pela jurisprudência na área dos direitos sociais se revela em vários pontos problemático, seja no que diz com a concretização de seu conteúdo e limites, seja no que concerne ao papel do Poder Judiciário no controle das ações e omissões dos demais órgãos estatais quando em causa a garantia do mínimo existencial. Mas isso será objeto de atenção na próxima coluna.
[1] Cf., por todos, ARNAULD, Andreas von. “Das Existenzminimum”, in: ARNAULD, Andreas von; MUSIL, Andreas (Ed.). Strukturfragen des Sozialverfassungsrechts, Tübingen: Mohr Siebeck, 2009, p. 253 e ss., apontando para o fato de que na Legislação da Prússia, em 1794, já havia a previsão da obrigação do Estado em cuidar da alimentação e atenção daqueles cidadãos que não conseguiam prover o seu próprio sustento ou mesmo por meio de outros particulares, com base em disposições legais especiais.
[2] V. também TORRES, Ricardo Lobo. O Direito ao Mínimo Existencial, Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 3 e ss., e, por último, no âmbito da literatura brasileira dedicada especialmente ao tema, NETO, Eurico Bitencourt. O Direito ao Mínimo para uma Existência Condigna, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010, p. 23 e ss.
[3] Sobre este debate, v., por todos, HERRERA, Carlos Miguel. Les Droits Sociaux, Paris: PUF, 2009, p. 39 e ss.
[4] Nesse sentido, v. por todos, ZACHER, Hans-Friedrich. “Das soziale Staatsziel”, in: Isensee-Kirchhof (Org.). Handbuch des Staatsrechts der Bundesrepublik Deutschland (HBStR), vol. I, Heidelberg, CF Muller, 1987, p. 1062 e ss.
[5] Cf. SCHOLLER, Heinrich. “Die Störung des Urlaubsgenusses eines ‘empfindsamen Menschen’ durch einen Behinderten”, in: Juristenzeitung, 1980, p. 676 (“wo ein Dasein möglich ist, welches sich grundrechtlich entfalten kann, insbesondere wo die Möglichkeit der Persönlichkeitsentfaltung besteht”).
[6] Neste sentido, v., em caráter ilustrativo, SORIA, José Martínez. “Das Recht auf Sicherung des Existenzminimums”, in: Juristenzeitung, n. 13, 2005, especialmente p.647-48.
[7] Cf. a decisão proferida no Acórdão n° 509 de 2002, versando sobre o rendimento social de inserção.
[8] Cf., paradigmaticamente, na decisão proferida na STA 175, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgada em 17.03.2010.
Ingo Wolfgang Sarlet é professor titular da Faculdade de Direito da PUC-RS, desembargador no TJ-RS, doutor e pós-doutor em Direito.
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Advogado em São José do Rio Preto