Abuso de direito e culpa na responsabilidade civil
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Afirma-se com frequência que a responsabilidade civil decorrente do abuso de direito independe de culpa. Em sede doutrinária, é recorrente a tese de que o art. 186 do Código Civil conteria uma cláusula geral de responsabilidade por culpa, enquanto o art. 187 ofereceria uma cláusula geral de ilicitude de natureza objetiva[1]. De certa forma, é também o que propõe o Enunciado 37 na 1a Jornada de Direito Civil, promovida pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal: “A responsabilidade civil decorrente do abuso do direito independe de culpa e fundamenta-se somente no critério objetivo-finalístico”.
Alçada ao patamar de consenso na literatura, a tese não tardou a ser acolhida também pelos tribunais. Assim, a 7a Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, por mais de uma vez, invocou o referido enunciado como justificativa para responsabilizar objetivamente operadoras de planos de saúde pelo defeito na prestação de serviços de assistência médica e hospitalar.[2] No mesmo tribunal, o verbete também já foi empregado para responsabilizar a faturizadora que protestou indevidamente duplicada sem lastro comercial[3]; ou para condenar os proprietários que retiraram e danificaram outdoors instalados em seu imóvel por terceiros.[4]
A mesma fundamentação é encontrada em julgados de outras cortes estaduais, como, por exemplo, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, que decidiu ser abusivo o corte unilateral de fornecimento de água como retaliação do locador pelo inadimplemento dos débitos locatícios.[5] O TJRS também recorreu ao Enunciado 37 quando responsabilizou um sujeito que forjou provas para impugnar a candidatura de um desafeto político.[6]
A despeito de sua aceitação, tanto na literatura, quanto nos tribunais, a tese de que a responsabilidade decorrente do abuso de direito é objetiva comporta maior reflexão.
Em artigo que aborda a influência da doutrina francesa sobre o atual Código Civil brasileiro, Véra Jacob de Fradera cita o referido enunciado como um exemplo da importância da doutrina finalista de Josserand e de sua Escola no pensamento jurídico brasileiro.[7] De fato, o verbete ilustra perfeitamente essa concepção, pois deixa claro que a configuração do abuso de direito não pressupõe a intenção de lesar. Conforme a redação do enunciado, o critério é objetivo-finalístico: o jornalista que extrapola o seu direito de informar, segundo os critérios do fim econômico ou social do seu direito, da boa-fé ou dos bons costumes, incorre em abuso de direito, nos termos do art. 187 do Código Civil, independentemente de eventual reprovabilidade subjetiva de sua conduta.
Todavia, não há no Código Civil nenhum ponto de apoio para a conclusão de que a responsabilidade por abuso de direito seria independe de culpa. É nesse aspecto que o Enunciado 37 da 1a Jornada se equivoca. A responsabilidade em caso de abuso de direito pode ou não prescindir de culpa, a depender do suporte fático da pretensão indenizatória. O fornecedor de produtos e serviços que abusa de seu direito responde objetivamente pelos danos sofridos pelo consumidor; mas isso decorre, não tanto do regime do abuso, mas, antes, porque a responsabilidade do fornecedor está fundada no defeito do produto ou do serviço, para o qual a culpa é irrelevante. A empresa jornalística que abusa de seu direito pode, eventualmente, ser responsabilizada independentemente de culpa, com fundamento na cláusula geral do art. 927, parágrafo único, do Código Civil, desde que se considere que sua atividade implica, por sua natureza, risco para os direitos de outrem. De qualquer forma, o abuso de direito, por si só, não torna objetiva a sua responsabilidade.
Nesse ponto, é necessário fazer duas observações.
A primeira delas é de ordem formal. Ao tratar da obrigação de indenizar, o art. 927 estabelece duas cláusulas gerais de responsabilidade. O seu caput foi reservado à responsabilidade por ato ilícito; o seu parágrafo único, à responsabilidade independente de culpa. Ora, se o legislador houvesse considerado o abuso de direito uma hipótese de responsabilidade objetiva, não o teria mencionado expressamente no caput do dispositivo, ao lado do art. 186: “Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo”. Seu lugar natural seria junto às demais hipóteses de responsabilidade sem culpa, reguladas no parágrafo único.
A segunda, de ordem conceitual, diz respeito à definição de culpa. Como se extrai dos próprios termos adotados pelo Enunciado 37, o que levou a doutrina a extirpar a culpa do âmbito do abuso de direito é a crença de que o propugnado “critério objetivo-finalístico” seria inconciliável com a qualquer análise da culpa do agente. Essa crença, contudo, é equivocada. Não há incompatibilidade alguma entre os dois critérios; ou, ao menos, se adotada a chamada concepção normativa da culpa.
Nesse ponto, os manuais e tratados de direito penal prestam um excelente auxílio aos civilistas. Para a teoria psicológica da culpa, outrora em voga na doutrina penal, a culpabilidade seria o vínculo psicológico que une o autor ao resultado produzido por sua ação. Suas únicas espécies seriam o dolo e a culpa, sendo a imputabilidade (capacidade de ser culpável) um pressuposto da culpabilidade. Essa concepção, todavia, foi progressivamente superada pela ciência penal. Nas palavras de Cezar Roberto Bitencourt, “era absolutamente incoerente visualizar a culpabilidade com algo puramente psicológico, quando uma de suas formas de manifestação – a culposa – não tinha caráter psicológico. […]. Enfim, a culpa não consiste em algo psicológico, mas em algo normativo: a infração do dever objetivo de cuidado”.[8] Com o finalismo de Hans Welzel, eliminou-se, inclusive, todo e qualquer elemento subjetivo da culpabilidade: o dolo e a culpa foram transferidos para a tipicidade, resumindo-se a culpabilidade a um “juízo acerca do processo de motivação do autor da conduta típica e antijurídica”.[9]
O referido juízo subjetivo, consistente, em síntese, em decidir acerca da possibilidade concreta de o autor do ilícito agir de modo distinto, é imprescindível no Direito Penal, dado o princípio nullum crimen sine culpa. Tal não ocorre no Direito Civil, onde a reprovabilidade subjetiva não é necessária, nem mesmo no regime de responsabilidade por ato ilícito. Na obra clássica Culpa e risco, Agostinho Alvim já concluía, quanto ao Direito Civil, que “todo movimento se acentua no sentido de se objetivar, de se concretizar a noção de culpa. Afasta-se a imputabilidade moral para se apreciar tão-somente o erro de conduta em face do comportamento do homem normal, excluindo-se, porém, as circunstâncias internas, pessoais, do agente e assim se proclama com fundamento na própria culpa dos que agem sem discernimento”.[10]
Opõe-se, assim, a culpa subjetiva à culpa objetiva, e, nesse sentido, define-se culpa simplesmente como “a violação de uma norma ou de um dever que se impõe ao agente”,[11] nas palavras de Geniviève Viney, Patrice Jourdain e Suzanne Carval. Na Alemanha, a negligência (Fahrlässigkeit) é definida no § 276 II do BGB como a violação do cuidado exigido no tráfego (relações sociais), tratando-se, segundo a doutrina majoritária daquele país, de um critério objetivo: deve-se agir com o cuidado que se espera de um ser humano normal, prudente e dotado de competências e habilidades de um homem médio.[12]
No Brasil também se afirma que “a noção de culpa é normativa” e que, “não havendo normas legais ou regulamentares específicas, o conteúdo do dever objetivo de cuidado só pode ser determinado por intermédio de um princípio metodológico – comparação do fato concreto com o comportamento que teria adotado, no lugar do agente, um homem comum, capaz e prudente”.[13] Ora, a adoção desse conceito normativo da culpa exclui a pretensa incompatibilidade entre essa noção e o mencionado critério objetivo-finalístico do abuso de direito. Aliás, o próprio Josserand, ferrenho defensor do critério funcional ou finalístico[14], jamais negou que o abuso fosse uma aplicação concreta da ideia de culpa no exercício de certos direitos[15].
É claro que a adoção de um conceito objetivo de culpa dificulta a distinção deste elemento em relação à ilicitude ou à antijuridicidade. Talvez essa oposição sequer seja necessária para o Direito Civil, mas é uma questão irrelevante para a conclusão deste breve artigo: o Enunciado 37 da 1a Jornada de Direito Civil deve ser repensado.[16] Em sua atual redação, o verbete prejudica a compreensão das questões práticas enfrentadas pelos tribunais. Além disso, ele é desnecessário nos casos em que é invocado, seja porque já existe um fundamento jurídico para uma responsabilidade objetiva, como ocorre, por exemplo, nos casos envolvendo planos de saúde, citados acima, nos quais se aplicam as regras do CDC, seja porque a culpa ou o dolo são patentes, como, por exemplo, no caso do corte unilateral de fornecimento de água e no da impugnação da candidatura com provas forjadas, decididos pelo TJ-RS.
* Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFPE, UFF, UFC, UFBA e UFMT).
[1] FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: parte geral e LINDB, 13 ed. São Paulo: Atlas, 2015. vol. 1, p. 587.
[7] FRADERA, Véra Jacob de. L’influence de la doctrine française dans l’actuel code civil brésilien. In Mélanges Camille Joffret-Spinosi. Paris: Dalloz, 2014, p. 664.
[8] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral, 23 ed. São Paulo: Saraiva, 2017. v. 1, p. 453. Itálico no original.
[10] ALVIM, Agostinho. Culpa e risco, 2 ed. rev. e atual. por Ovídio Rocha Barros Sandoval. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 108-109. Itálico no original.
[11] VINEY, Geneviève; JOURDAIN, Patrice; CARVAL, Suzanne. Les conditions de la responsabilité, 4 ed. Paris: LGDJ, 2013, p. 445 (= n. 443)
[12] KÖTZ, Hein; WAGNER, Gerhard. Deliktsrecht, 11 ed. Munique: Franz Vahlen, 2010, p. 54 (= n. 113).
[13] CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de responsabilidade civil, 9 ed. São Paulo: Atlas, 2010, p. 34.
[14] JOSSERAND, Louis. De l’esprit des droits et de leur relativité: théorie dite de l’abus des droits. 2 ed. Paris: Dalloz, 1939, pp. 394-400 (= n. 291 e s.).
[15] Ibidem, p. 382 (= n. 283).
[16] Outras críticas ao Enunciado 37 são encontradas em REINIG, Guilherme Henrique Lima; CARNAÚBA, Daniel Amaral. Abuso de direito e responsabilidade por ato ilícito: críticas ao Enunciado 37 da 1a Jornada de Direito Civil. Revista de Direito Civil Contemporâneo, vol. 7, ano 3, p. 63-94, São Paulo, abr.-jun. 2016.
Guilherme Henrique Lima Reinig é professor adjunto da Universidade Federal de Santa Catarina, mestre e doutor em Direito Civil pela Universidade de São Paulo e membro da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo.
Daniel Amaral Carnaúba é professor Adjunto da Universidade Federal de Juiz de Fora (campus Governador Valadares). Doutor em Direito Civil pela Universidade de São Paulo e mestre em Direito Privado pela Université Panthéon-Sorbonne (Paris 1). Membro da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo
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Advogado em São José do Rio Preto